Olá! Hoje é o dia da poesia, não é? Celebremos então a poesia, com Sophia.
No canal dois da televisão pública, houve há tempos um programa sobre Sophia em que muito dela se disse e dos seus poemas, e se recitaram alguns. Sobremaneira relevante foi o testemunho que uma sua filha deu, falando de Sophia e dos seus poemas. Neles, “com substantivos concretos” como a própria diz, Sophia canta o espanto pela sua descoberta das realidades do mundo. Note-se aqui, entre parêntesis, que foi também o espanto pela descoberta das realidades do mundo que deu origem ao pensamento ocidental e à própria Europa que ainda somos. E não é portanto por acaso que Sophia sente tanta atracção pela beleza e pela bondade desse mundo antigo.
Sophia canta o espanto pela descoberta das realidades do mundo, mas com “substantivos concretos” e sempre com palavras simples. Sua própria mãe, no limiar do gracejo, costumava dizer-lhe: “Ó filha, tu és tão simples que ninguém te entende!”
Segundo diz a filha de Sophia, o livro de poemas intitulado “Navegações” nada tem a ver com as nossas descobertas marítimas. Elas são, sim, a admirável, a fascinante descoberta do mundo original, inocente, mundo de antes destas tantas e tão severas fracturas que nele nós fomos impondo. Ela parte do real mundo de coisas e palavras que a todos aparecem, mas depois, com o seu poder demiúrgico, ela transfigura essas palavras e esse mundo real, àquelas dando conotações originais, e a este dando a sua inocência original, boa e bela.
No mesmo passo em que intui um novo mundo e o vai pondo em palavras, Sophia cria poemas encantatórios e um mundo sedutor; mas só quem pára e está atento e se purificou para sintonizar com ela saberá acolhê-los e deixar-se seduzir e encantar por eles. Suas palavras – em grande parte quase banais substantivos e verbos e adjectivos de significação objectiva e concreta – suas palavras caem no vazio e no silêncio da alma; elas são pingos de som que ecoam nos recessos da alma purificada, aí encontrando secretos sentidos que, à superfície da linguagem e das coisas, não se deixam adivinhar. E com eles - ela primeiro e depois nós -, vamos criando esse mundo novo e original, muito bom e belo. O mundo, a realidade mundana aparece a todos os homens, mas à poeta e aos que ela com seus poemas seduz, ele aparece de uma nova maneira, transfigurado. Esta nova aparição produz-se no cadinho da alma, nesse vaso mental onde todos sentimos o calor das emoções, delas se fazendo sentimentos. Sem dúvida que o corpo e o espírito também têm o seu papel, mas o laboratório está na alma.
Antes de entrarmos propriamente em qualquer dos poemas de Sophia, é bom citarmos os seus grandes temas poéticos, referidos numa antologia de poemas seus: o mar, a casa, o amor, a claridade, a transparência. E inspirados também na sua muito bela intervenção na Sociedade Portuguesa de Autores em 1964, por ocasião da entrega do Grande Prémio de Poesia atribuído ao seu LIVRO SEXTO, caracterizemos melhor a sua poesia, especialmente com citações extraídas desse texto:
Nos poemas de Sophia, há “a própria presença do real” descoberta pela poetisa com seu objectivo olhar. Com esse objectivo olhar, ela descobre a “felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas”. É assim isso como que um conhecer directo, sem a mediação de conceitos, do qual noutros textos deste blog se tem falado (7, 15, 42, 47).
Para Sophia, com efeito, a poesia é “uma perseguição do real” … “a busca atenta” do real, a procura de “uma relação justa” com as coisas e o homem; e um poema é “um círculo traçado à roda de uma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso”; é a iluminação do real, visto à luz da sua própria claridade e transparência. Somos feitos de “louvor e de protesto”: “se em frente do esplendor do mundo nos alegramos com paixão, também em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixão”.
Do oceano das benditas palavras por todos nós inventadas, comum património cultural, vejam-se as que Sophia escolhe e recolhe para criar este pequeno grande poema a que deu o título de MEIO DA VIDA, poema extraído precisamente do seu LIVRO SEXTO: “Porque as manhãs são rápidas e o seu sol quebrado // Porque o meio-dia / Em seu despido fulgor rodeia a terra // A casa compõe uma por uma as suas sombras / A casa prepara a tarde / Frutos e canções se multiplicam / Nua e aguda / A doçura da vida”.
O poema compõe-se de três estrofes, tendo cada uma o seu núcleo semântico, à volta do qual se associam outras objectividades sempre representadas por palavras. A objectividade nuclear representada na primeira estrofe é “manhãs”, à qual se junta que elas, as manhãs, “são rápidas e o seu sol quebrado”; a da segunda estrofe é “meio-dia”, de que se diz que “seu despido fulgor rodeia a terra”; a da terceira estrofe é “A casa”, à qual se refere, antes de mais o resto do poema: ela “compõe uma por uma as suas sombras”, “prepara a tarde”, na qual “frutos e canções se multiplicam” e aparece “nua e aguda / a doçura da vida”.
Quanto às manhãs, “porque as manhãs são rápidas”, elas estão contidas num só verso, que constitui a primeira estrofe; ao “meio-dia” atribui-se a segunda estrofe, composta de dois versos. A terceira estrofe, feita de cinco versos, está toda por conta do terceiro núcleo semântico (“A casa”), que é dos três o mais importante, assim a ele se referindo também as duas primeiras estrofes, e portanto todo o poema. Veja-se como “A casa” está no início dos dois versos centrais do poema, havendo três versos antes, e outros tantos depois.
À volta de “A casa”, portanto, traça-se “um círculo”, como diz a autora, “um círculo onde o pássaro do real fica preso”. Que real será este, assim designado? De toda a rede ou tecido do poema, feito sobretudo de palavras de significação objectiva mas também de algumas com significação só gramatical – será até a estas que se deve a rede ou tecido que é o poema – emerge assim do seu centro, como gema de alto valor, “A casa”, um dos temas fundamentais da poesia desta autora, como já vimos. Mas que valor de sentido - sentido poético, com certeza - haverá nesta expressão? O título do poema ajudará a responder. Nesse central significante tão simples, mesmo banal, está a figura humana em revelação a si própria: o sujeito poético, antes de mais, (que já viveu as suas rápidas manhãs e o fulgor despido do seu meio-dia e agora prepara a sua “tarde”, tarde prenhe de “frutos e canções” em que se desvela “nua e aguda / a doçura da vida”), mas também nós mesmos, se quisermos, agora já fora do simbólico “circulo” do poema, mau grado a amarga realidade do tempo em que vivemos.
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