Olá! Nós somos feitos de mudanças ou de tempo, feitos de permanência e de mobilidade: nós somos, indo; mas também nós vamos, sendo. Se é verdade que, nas mudanças temporais, nós encontramos e reconhecemos a nossa identidade, também é certo que esta está para além daquelas, embora nelas a tenhamos de preservar. Conscientes das mudanças, nossas e do mundo, nós somos essa consciência.
Ora, as palavras são como nós: elas vão mudando, mas, nas mudanças, a sua identidade terá de ser preservada; elas são movediças como areia de dunas, mas também possuem a solidez das pedras. Em suma, “verba volant, scripta manent”, ou seja, a palavra oral voa, mas a escrita permanece. Por isso, só a palavra escrita, para além de ser manancial de história e de cultura de um povo, pode ser referência estável para a palavra oral.
Como é que então a palavra oral e a sua pronúncia podem constituir-se como norma ortográfica, ou seja, como norma da palavra escrita, como pretende o novo Acordo Ortográfico (AO)? Não é a solidez do edifício andar a reboque da fluidez das dunas?
Para resolver dificuldades de escrita, o AO sugere a utilização da “norma culta da pronúncia”. Mas como, se ela não está definida e até é uma contradição nos termos? Contradição porque a pronúncia é sempre movediça, não podendo assim constituir-se em norma de escrita: ela é própria do discurso oral, que, como sabemos, se pratica com uma grande variedade de pronúncias.
Se a norma da oralidade existe, ela é produzida pelos falantes que também sabem ler e escrever, e com essa escrita enriquecem e normalizam a oralidade, a partir da escrita, a qual tem as suas regras ortográficas. (Veja-se o caso oposto de uma pessoa iliterata: aprendendo a oralidade só por ouvido – algumas vezes até em convívio quase só com outras iliteratas -, ela não terá uma oralidade muito deficiente?) Mas tal norma culta de pronúncia, se existir, será só para normalizar a oralidade geral e não a escrita. Como é que então se avança para um AO, com base na oralidade? Cedeu-se ao aperto do facilitismo e do utilitarismo, arrasando o valor histórico e cultural das palavras que, ao vê-las de relance numa folha de papel, logo muitas delas se nos apresentam desfiguradas, como frangas depenadas em guerras de capoeira.
Mas tal como o novo AO, assim também todas as nossas palavras são frágeis, como frágeis nós somos. E se alguma palavra há que nos garanta alguma segurança e permanência, essa é a palavra escrita. É também nesta palavra escrita que facilmente podemos reconhecer famílias de palavras provenientes de um tronco ou étimo comum.
A palavra “frágil”, por exemplo, a par de muitas outras, todas provêm do mesmo tronco “fra(n)g-“ ou “frac-“, o qual aparece no verbo latino “frang(ere)”, que significa “partir”, “abater”, tanto em sentido físico como moral. Da primeira forma ou variante desse tronco comum, entre outras, vieram-nos as seguintes palavras: “frango”, “confrangedor”, “refrangência”, “frágil”, “fragor”, “fraga”, “fragoso”, “fragilidade”, “fragmento”, “náufrago” e “naufrágio”. Da segunda variante do tronco comum, temos, por exemplo, as seguintes: “fractura”, “fracção”, “refracção”, “infracção”, “refractário”.
“Fragor” é o barulho produzido por objecto que se parte; “fragmento” é um pedacinho de uma unidade maior que se partiu; “naufrágio” é aquilo que acontece quando a nau ou navio se parte; “fractura” é o acto ou o efeito de partir alguma coisa. E “frango”, o que será? Os dicionários dizem que a origem desta palavra é obscura, mas eu aventuro-me a dizer que ela pertence a esta família de palavras e significa um animal muito nosso familiar, comestível, que ainda tem uma vida frágil, não tendo alcançado portanto a rijeza de galo! Pois, em linguagem popular, o que é um “franganote” ou um “franganito”? Não é um rapaz ou rapazola ainda tenro e imberbe?
Há ainda a palavra “frangmalho”, que vai caindo em desuso mas que eu ouvia dizer frequentemente aos meus pais quando criança, no tempo das colheitas, e remete para os pedacinhos pequeninos quase pó, em que era feita a palha do cereal na eira, a poder de ser batida e partida com o malho. Mas tal como os malhos quase desapareceram das eiras, assim também com eles vai desaparecendo a palavra.
De pedacinhos pequeninos somos nós feitos - partículas e energia que nos chegam dos quatro cantos do universo – tal como, afinal, de pequeninos são também as nossas palavras, feitas de raiz e tema, mas também de características temporais e modais, bem como ainda de prefixos e infixos e sufixos, tudo próprio de uma mas também de muitas outras. Mas, no novo AO, várias das palavras acima referidas – precisamente as que nos vêm da segunda variante do tronco comum -, perdem a consoante surda da raiz, consoante que tem servido para ajudar a identificar a origem etimológica da palavra e para abrir a vogal anterior.
Pimpolho menino ou menina vai à escola para aprender a ler, escrever e contar. E a falar, não vai também aprender? Quanto à oralidade, vai aperfeiçoá-la em contacto com a leitura e com a escrita e no convívio da aula, sempre sob a orientação do professor.
Por ser por natureza movediça, a oralidade precisa de uma contínua referência à escrita, que lhe dá alguma estabilidade. Por sua vez, a escrita não pode ser mouca em relação à oralidade, para não se sobrecarregar de atavios culturais. Porém, na escrita de uma língua, - na escrita em si mesma e não só nos produtos que a usam -, deve guardar-se memória cultural de si mesma e também do povo que a fala, em discurso oral.
Ora, as palavras são como nós: elas vão mudando, mas, nas mudanças, a sua identidade terá de ser preservada; elas são movediças como areia de dunas, mas também possuem a solidez das pedras. Em suma, “verba volant, scripta manent”, ou seja, a palavra oral voa, mas a escrita permanece. Por isso, só a palavra escrita, para além de ser manancial de história e de cultura de um povo, pode ser referência estável para a palavra oral.
Como é que então a palavra oral e a sua pronúncia podem constituir-se como norma ortográfica, ou seja, como norma da palavra escrita, como pretende o novo Acordo Ortográfico (AO)? Não é a solidez do edifício andar a reboque da fluidez das dunas?
Para resolver dificuldades de escrita, o AO sugere a utilização da “norma culta da pronúncia”. Mas como, se ela não está definida e até é uma contradição nos termos? Contradição porque a pronúncia é sempre movediça, não podendo assim constituir-se em norma de escrita: ela é própria do discurso oral, que, como sabemos, se pratica com uma grande variedade de pronúncias.
Se a norma da oralidade existe, ela é produzida pelos falantes que também sabem ler e escrever, e com essa escrita enriquecem e normalizam a oralidade, a partir da escrita, a qual tem as suas regras ortográficas. (Veja-se o caso oposto de uma pessoa iliterata: aprendendo a oralidade só por ouvido – algumas vezes até em convívio quase só com outras iliteratas -, ela não terá uma oralidade muito deficiente?) Mas tal norma culta de pronúncia, se existir, será só para normalizar a oralidade geral e não a escrita. Como é que então se avança para um AO, com base na oralidade? Cedeu-se ao aperto do facilitismo e do utilitarismo, arrasando o valor histórico e cultural das palavras que, ao vê-las de relance numa folha de papel, logo muitas delas se nos apresentam desfiguradas, como frangas depenadas em guerras de capoeira.
Mas tal como o novo AO, assim também todas as nossas palavras são frágeis, como frágeis nós somos. E se alguma palavra há que nos garanta alguma segurança e permanência, essa é a palavra escrita. É também nesta palavra escrita que facilmente podemos reconhecer famílias de palavras provenientes de um tronco ou étimo comum.
A palavra “frágil”, por exemplo, a par de muitas outras, todas provêm do mesmo tronco “fra(n)g-“ ou “frac-“, o qual aparece no verbo latino “frang(ere)”, que significa “partir”, “abater”, tanto em sentido físico como moral. Da primeira forma ou variante desse tronco comum, entre outras, vieram-nos as seguintes palavras: “frango”, “confrangedor”, “refrangência”, “frágil”, “fragor”, “fraga”, “fragoso”, “fragilidade”, “fragmento”, “náufrago” e “naufrágio”. Da segunda variante do tronco comum, temos, por exemplo, as seguintes: “fractura”, “fracção”, “refracção”, “infracção”, “refractário”.
“Fragor” é o barulho produzido por objecto que se parte; “fragmento” é um pedacinho de uma unidade maior que se partiu; “naufrágio” é aquilo que acontece quando a nau ou navio se parte; “fractura” é o acto ou o efeito de partir alguma coisa. E “frango”, o que será? Os dicionários dizem que a origem desta palavra é obscura, mas eu aventuro-me a dizer que ela pertence a esta família de palavras e significa um animal muito nosso familiar, comestível, que ainda tem uma vida frágil, não tendo alcançado portanto a rijeza de galo! Pois, em linguagem popular, o que é um “franganote” ou um “franganito”? Não é um rapaz ou rapazola ainda tenro e imberbe?
Há ainda a palavra “frangmalho”, que vai caindo em desuso mas que eu ouvia dizer frequentemente aos meus pais quando criança, no tempo das colheitas, e remete para os pedacinhos pequeninos quase pó, em que era feita a palha do cereal na eira, a poder de ser batida e partida com o malho. Mas tal como os malhos quase desapareceram das eiras, assim também com eles vai desaparecendo a palavra.
De pedacinhos pequeninos somos nós feitos - partículas e energia que nos chegam dos quatro cantos do universo – tal como, afinal, de pequeninos são também as nossas palavras, feitas de raiz e tema, mas também de características temporais e modais, bem como ainda de prefixos e infixos e sufixos, tudo próprio de uma mas também de muitas outras. Mas, no novo AO, várias das palavras acima referidas – precisamente as que nos vêm da segunda variante do tronco comum -, perdem a consoante surda da raiz, consoante que tem servido para ajudar a identificar a origem etimológica da palavra e para abrir a vogal anterior.
Pimpolho menino ou menina vai à escola para aprender a ler, escrever e contar. E a falar, não vai também aprender? Quanto à oralidade, vai aperfeiçoá-la em contacto com a leitura e com a escrita e no convívio da aula, sempre sob a orientação do professor.
Por ser por natureza movediça, a oralidade precisa de uma contínua referência à escrita, que lhe dá alguma estabilidade. Por sua vez, a escrita não pode ser mouca em relação à oralidade, para não se sobrecarregar de atavios culturais. Porém, na escrita de uma língua, - na escrita em si mesma e não só nos produtos que a usam -, deve guardar-se memória cultural de si mesma e também do povo que a fala, em discurso oral.
Boa noite sr. professor João
ResponderEliminar"frangas depenadas em guerras de capoeira" foi mesmo assim que as nossas palavras ficaram. O novo AO é uma grande mancha negra na escrita e na cultura portuguesa.
Há muitas boas pessoas, literadas, que chegam ao meu local de trabalho e pedem "mortandela" o que elas querem realmente é mortadela, neste caso a escrita não ajuda nem corrige a oralidade.
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Não se deixe levar pelo vicio que é o computador. O sol, a chuva, o vento da rua dão mais alegria que uma cadeira, um teclado e um ecran.
Muito Obrigado, Isabel. Sobretudo pelo seu sábio conselho.
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