1 - Há ali no pátio, suspenso de um dos grampos que fixam e protegem a sua cobertura, um cesto de arco todo feito de verga com um denso arranjo de ramos e de folhas, ali posto há vários anos e já todo ressequido e carregado de pó. De modo que, há dias, resolvi descer o cesto do poleiro por já ser mais que tempo de substituir o velho e carcomido arranjo por folhas frescas e verdes.
Mas quando o desapeei lá das alturas e o coloquei no chão, os meus olhos arregalaram-se e fiquei de boca aberta! Estava lá um ninho, um ninho devoluto por não ser tempo de ninhos, um ninho aos meus olhos muito estranho pela sua pequenez e formato. Pouco mexi nele, mas observei-o bem. Era uma bola oca argamassada em barro e palhiço, elegante e resistente, com um pequenino orifício de cinco cêntimos para alguém entrar e sair.
Dona Gilda, entretanto chegada, pessoa sábia em muitos assuntos e também em ninhos, proferiu a sentença sem apelação para outra instância: “Com certeza que é um ninho de carriça”!
Há no mundo ninhos de carriça, de melro e de andorinha..., mas também há no mundo um ninho que não é do mundo por não ser material mas tão só etéreo ou espiritual, ninho a um tempo macio e resistente e de muita estimação, onde pomos as nossas mais profundas expectativas, para além de ser o nosso último e seguro abrigo para as piores desventuras. Somos nós que fazemos esse ninho, ninho de ervas e do barro de que também nós somos feitos, ou ele está aí, realmente, para nos acolher, para nos dar a sua mão afectuosa e segura?
2 - Então, sem mais tocar no ninho e nas folhagens, coloquei de novo o cesto e todo o seu velho e ressequido recheio no lugar onde estavam e apelei à memória de acontecimentos relativamente recentes. A casa tinha estado fechada por dois anos menos uma primavera (2009-11), tendo eu saído dela no final de uma primavera e reentrado no princípio de outra, tempo ameno e bonito para regressar. E nos derradeiros dias desta última primavera - lembro-me bem -, dei-me conta de um muito belo se bem que muito breve espectáculo. Numa manhã doce desse Junho, Junho passado próximo, houve no pátio um gorjeio infindável de um infindável bando de aves pequeninas, cirandando ágeis por todos os cantos, e dependurando-se e agarrando-se às paredes como fazem os morcegos e as lagartixas.
Dona Gilda está ali a dizer que “as carriças são muito pequeninas, também desconfiadas, e só põem dois ovos por ano”. Por isso, todo aquele infindável gorjeio terá sido mesmo de um bando de carriças! Mas como elas põem só dois ovos por ano, mesmo se contarmos todos os anos para trás que não são muitos por aí além desde que o cesto está ali com seu arranjo vegetal, como elas põem só dois ovos por ano e não nascem gémeos e alguns bebés nascidos terão morrido pequeninos, então, nem todas as carriças aqui então aparecidas puderam ter nascido neste ninho! Quantas nasceram cá? De onde vieram as outras? Que vieram todas fazer? Veio toda a colónia de carriças dos arredores dar as boas-vindas às duas recém-nascidas aqui?
3 - Há ninhos de carriça, de melro e de rabila … Mas porque damos nós nome às coisas? Será para as conhecermos e dominarmos? E porque é que também nós temos nome: eu, o Jacinto; eu, o Arlindo; eu, a Filipa? Será para afirmarmos e defendermos o nosso eu? É certo que, por motivos práticos e profissionais, nós precisamos dos conteúdos do nosso eu mental, mas, fora isso, pelo menos a espaços, se formos só consciência e consciência de sermos conscientes, como pede Caeiro, então, vazios mentalmente, estaremos abertos a tudo, para sermos tudo e para dominarmos nada!
Se nada mais houvermos e formos, para além de conscientes, já não haverá nacionalismos nem quaisquer outras fronteiras. Já Gustav Mahler (1860-1911), por exemplo, esse inspirado maestro e compositor sinfónico, não se teria sentido desterrado e escorraçado em qualquer parte do mundo, só por seu judeu. “Sou apátrida por três razões: como nativo da Boémia, na Áustria; como austríaco, na Alemanha; como judeu, no mundo inteiro”. Escorraçado da Áustria, por não ser de lá, escorraçado da Alemanha, por não ser de lá, escorraçado do mundo, por ser judeu, Mahler ainda se converteu ao cristianismo, mas também isto em nada lhe resultou. Só em Alma, sua jovem namorada e depois esposa, a quem dedicou o adagietto de uma sua sinfonia, o artista encontrou o seu ninho, a sua pátria que o acolheu e amou.
4 - E agora, nesta contínua mudança de estações e de outras mudanças de que de todas somos feitos por sermos seres de tempo que é só a medida das mudanças, estou ansiando pelo início de nova primavera para que a carriça venha de novo habitar o seu ninho e que nele outra vez procrie, para de novo eu poder fruir do baile de todo o bando no pátio, por altura da apresentação de mais duas juvenis à tribo imensa das carriças! Ou não virá ela por ser desconfiada e eu ter tocado, ainda que ao de leve, no seu ninho? Ou não virá ainda por via das passeatas que uma ladina sardanisca por lá tem andado a fazer? Mas, se a carriça vier, e o breve baile acontecer, determino que ele seja acompanhado daquele um pouco mais demorado adagietto, mas isso só em fundo muito baixinho para não perturbar o álacre gorjeio do ágil bando das carriças, também breve como o baile, como breves são todas as belas e boas coisas da vida.
Mas quando o desapeei lá das alturas e o coloquei no chão, os meus olhos arregalaram-se e fiquei de boca aberta! Estava lá um ninho, um ninho devoluto por não ser tempo de ninhos, um ninho aos meus olhos muito estranho pela sua pequenez e formato. Pouco mexi nele, mas observei-o bem. Era uma bola oca argamassada em barro e palhiço, elegante e resistente, com um pequenino orifício de cinco cêntimos para alguém entrar e sair.
Dona Gilda, entretanto chegada, pessoa sábia em muitos assuntos e também em ninhos, proferiu a sentença sem apelação para outra instância: “Com certeza que é um ninho de carriça”!
Há no mundo ninhos de carriça, de melro e de andorinha..., mas também há no mundo um ninho que não é do mundo por não ser material mas tão só etéreo ou espiritual, ninho a um tempo macio e resistente e de muita estimação, onde pomos as nossas mais profundas expectativas, para além de ser o nosso último e seguro abrigo para as piores desventuras. Somos nós que fazemos esse ninho, ninho de ervas e do barro de que também nós somos feitos, ou ele está aí, realmente, para nos acolher, para nos dar a sua mão afectuosa e segura?
2 - Então, sem mais tocar no ninho e nas folhagens, coloquei de novo o cesto e todo o seu velho e ressequido recheio no lugar onde estavam e apelei à memória de acontecimentos relativamente recentes. A casa tinha estado fechada por dois anos menos uma primavera (2009-11), tendo eu saído dela no final de uma primavera e reentrado no princípio de outra, tempo ameno e bonito para regressar. E nos derradeiros dias desta última primavera - lembro-me bem -, dei-me conta de um muito belo se bem que muito breve espectáculo. Numa manhã doce desse Junho, Junho passado próximo, houve no pátio um gorjeio infindável de um infindável bando de aves pequeninas, cirandando ágeis por todos os cantos, e dependurando-se e agarrando-se às paredes como fazem os morcegos e as lagartixas.
Dona Gilda está ali a dizer que “as carriças são muito pequeninas, também desconfiadas, e só põem dois ovos por ano”. Por isso, todo aquele infindável gorjeio terá sido mesmo de um bando de carriças! Mas como elas põem só dois ovos por ano, mesmo se contarmos todos os anos para trás que não são muitos por aí além desde que o cesto está ali com seu arranjo vegetal, como elas põem só dois ovos por ano e não nascem gémeos e alguns bebés nascidos terão morrido pequeninos, então, nem todas as carriças aqui então aparecidas puderam ter nascido neste ninho! Quantas nasceram cá? De onde vieram as outras? Que vieram todas fazer? Veio toda a colónia de carriças dos arredores dar as boas-vindas às duas recém-nascidas aqui?
3 - Há ninhos de carriça, de melro e de rabila … Mas porque damos nós nome às coisas? Será para as conhecermos e dominarmos? E porque é que também nós temos nome: eu, o Jacinto; eu, o Arlindo; eu, a Filipa? Será para afirmarmos e defendermos o nosso eu? É certo que, por motivos práticos e profissionais, nós precisamos dos conteúdos do nosso eu mental, mas, fora isso, pelo menos a espaços, se formos só consciência e consciência de sermos conscientes, como pede Caeiro, então, vazios mentalmente, estaremos abertos a tudo, para sermos tudo e para dominarmos nada!
Se nada mais houvermos e formos, para além de conscientes, já não haverá nacionalismos nem quaisquer outras fronteiras. Já Gustav Mahler (1860-1911), por exemplo, esse inspirado maestro e compositor sinfónico, não se teria sentido desterrado e escorraçado em qualquer parte do mundo, só por seu judeu. “Sou apátrida por três razões: como nativo da Boémia, na Áustria; como austríaco, na Alemanha; como judeu, no mundo inteiro”. Escorraçado da Áustria, por não ser de lá, escorraçado da Alemanha, por não ser de lá, escorraçado do mundo, por ser judeu, Mahler ainda se converteu ao cristianismo, mas também isto em nada lhe resultou. Só em Alma, sua jovem namorada e depois esposa, a quem dedicou o adagietto de uma sua sinfonia, o artista encontrou o seu ninho, a sua pátria que o acolheu e amou.
4 - E agora, nesta contínua mudança de estações e de outras mudanças de que de todas somos feitos por sermos seres de tempo que é só a medida das mudanças, estou ansiando pelo início de nova primavera para que a carriça venha de novo habitar o seu ninho e que nele outra vez procrie, para de novo eu poder fruir do baile de todo o bando no pátio, por altura da apresentação de mais duas juvenis à tribo imensa das carriças! Ou não virá ela por ser desconfiada e eu ter tocado, ainda que ao de leve, no seu ninho? Ou não virá ainda por via das passeatas que uma ladina sardanisca por lá tem andado a fazer? Mas, se a carriça vier, e o breve baile acontecer, determino que ele seja acompanhado daquele um pouco mais demorado adagietto, mas isso só em fundo muito baixinho para não perturbar o álacre gorjeio do ágil bando das carriças, também breve como o baile, como breves são todas as belas e boas coisas da vida.