terça-feira, 27 de março de 2012

57 - O Ninho da Carriça

1 - Há ali no pátio, suspenso de um dos grampos que fixam e protegem a sua cobertura, um cesto de arco todo feito de verga com um denso arranjo de ramos e de folhas, ali posto há vários anos e já todo ressequido e carregado de pó. De modo que, há dias, resolvi descer o cesto do poleiro por já ser mais que tempo de substituir o velho e carcomido arranjo por folhas frescas e verdes.
Mas quando o desapeei lá das alturas e o coloquei no chão, os meus olhos arregalaram-se e fiquei de boca aberta! Estava lá um ninho, um ninho devoluto por não ser tempo de ninhos, um ninho aos meus olhos muito estranho pela sua pequenez e formato. Pouco mexi nele, mas observei-o bem. Era uma bola oca argamassada em barro e palhiço, elegante e resistente, com um pequenino orifício de cinco cêntimos para alguém entrar e sair.
Dona Gilda, entretanto chegada, pessoa sábia em muitos assuntos e também em ninhos, proferiu a sentença sem apelação para outra instância: “Com certeza que é um ninho de carriça”!
Há no mundo ninhos de carriça, de melro e de andorinha..., mas também há no mundo um ninho que não é do mundo por não ser material mas tão só etéreo ou espiritual, ninho a um tempo macio e resistente e de muita estimação, onde pomos as nossas mais profundas expectativas, para além de ser o nosso último e seguro abrigo para as piores desventuras. Somos nós que fazemos esse ninho, ninho de ervas e do barro de que também nós somos feitos, ou ele está aí, realmente, para nos acolher, para nos dar a sua mão afectuosa e segura?

2 - Então, sem mais tocar no ninho e nas folhagens, coloquei de novo o cesto e todo o seu velho e ressequido recheio no lugar onde estavam e apelei à memória de acontecimentos relativamente recentes. A casa tinha estado fechada por dois anos menos uma primavera (2009-11), tendo eu saído dela no final de uma primavera e reentrado no princípio de outra, tempo ameno e bonito para regressar. E nos derradeiros dias desta última primavera - lembro-me bem -, dei-me conta de um muito belo se bem que muito breve espectáculo. Numa manhã doce desse Junho, Junho passado próximo, houve no pátio um gorjeio infindável de um infindável bando de aves pequeninas, cirandando ágeis por todos os cantos, e dependurando-se e agarrando-se às paredes como fazem os morcegos e as lagartixas.
Dona Gilda está ali a dizer que “as carriças são muito pequeninas, também desconfiadas, e só põem dois ovos por ano”. Por isso, todo aquele infindável gorjeio terá sido mesmo de um bando de carriças! Mas como elas põem só dois ovos por ano, mesmo se contarmos todos os anos para trás que não são muitos por aí além desde que o cesto está ali com seu arranjo vegetal, como elas põem só dois ovos por ano e não nascem gémeos e alguns bebés nascidos terão morrido pequeninos, então, nem todas as carriças aqui então aparecidas puderam ter nascido neste ninho! Quantas nasceram cá? De onde vieram as outras? Que vieram todas fazer? Veio toda a colónia de carriças dos arredores dar as boas-vindas às duas recém-nascidas aqui?

3 - Há ninhos de carriça, de melro e de rabila … Mas porque damos nós nome às coisas? Será para as conhecermos e dominarmos? E porque é que também nós temos nome: eu, o Jacinto; eu, o Arlindo; eu, a Filipa? Será para afirmarmos e defendermos o nosso eu? É certo que, por motivos práticos e profissionais, nós precisamos dos conteúdos do nosso eu mental, mas, fora isso, pelo menos a espaços, se formos só consciência e consciência de sermos conscientes, como pede Caeiro, então, vazios mentalmente, estaremos abertos a tudo, para sermos tudo e para dominarmos nada!
Se nada mais houvermos e formos, para além de conscientes, já não haverá nacionalismos nem quaisquer outras fronteiras. Já Gustav Mahler (1860-1911), por exemplo, esse inspirado maestro e compositor sinfónico, não se teria sentido desterrado e escorraçado em qualquer parte do mundo, só por seu judeu. “Sou apátrida por três razões: como nativo da Boémia, na Áustria; como austríaco, na Alemanha; como judeu, no mundo inteiro”. Escorraçado da Áustria, por não ser de lá, escorraçado da Alemanha, por não ser de lá, escorraçado do mundo, por ser judeu, Mahler ainda se converteu ao cristianismo, mas também isto em nada lhe resultou. Só em Alma, sua jovem namorada e depois esposa, a quem dedicou o adagietto de uma sua sinfonia, o artista encontrou o seu ninho, a sua pátria que o acolheu e amou.

4 - E agora, nesta contínua mudança de estações e de outras mudanças de que de todas somos feitos por sermos seres de tempo que é só a medida das mudanças, estou ansiando pelo início de nova primavera para que a carriça venha de novo habitar o seu ninho e que nele outra vez procrie, para de novo eu poder fruir do baile de todo o bando no pátio, por altura da apresentação de mais duas juvenis à tribo imensa das carriças! Ou não virá ela por ser desconfiada e eu ter tocado, ainda que ao de leve, no seu ninho? Ou não virá ainda por via das passeatas que uma ladina sardanisca por lá tem andado a fazer? Mas, se a carriça vier, e o breve baile acontecer, determino que ele seja acompanhado daquele um pouco mais demorado adagietto, mas isso só em fundo muito baixinho para não perturbar o álacre gorjeio do ágil bando das carriças, também breve como o baile, como breves são todas as belas e boas coisas da vida.

quarta-feira, 21 de março de 2012

56 - Surfando no Oceano da Palavra Poética - IV


Olá! Hoje é o dia da poesia, não é? Celebremos então a poesia, com Sophia.
No canal dois da televisão pública, houve há tempos um programa sobre Sophia em que muito dela se disse e dos seus poemas, e se recitaram alguns. Sobremaneira relevante foi o testemunho que uma sua filha deu, falando de Sophia e dos seus poemas. Neles, “com substantivos concretos” como a própria diz, Sophia canta o espanto pela sua descoberta das realidades do mundo. Note-se aqui, entre parêntesis, que foi também o espanto pela descoberta das realidades do mundo que deu origem ao pensamento ocidental e à própria Europa que ainda somos. E não é portanto por acaso que Sophia sente tanta atracção pela beleza e pela bondade desse mundo antigo.
Sophia canta o espanto pela descoberta das realidades do mundo, mas com “substantivos concretos” e sempre com palavras simples. Sua própria mãe, no limiar do gracejo, costumava dizer-lhe: “Ó filha, tu és tão simples que ninguém te entende!”
Segundo diz a filha de Sophia, o livro de poemas intitulado “Navegações” nada tem a ver com as nossas descobertas marítimas. Elas são, sim, a admirável, a fascinante descoberta do mundo original, inocente, mundo de antes destas tantas e tão severas fracturas que nele nós fomos impondo. Ela parte do real mundo de coisas e palavras que a todos aparecem, mas depois, com o seu poder demiúrgico, ela transfigura essas palavras e esse mundo real, àquelas dando conotações originais, e a este dando a sua inocência original, boa e bela.

No mesmo passo em que intui um novo mundo e o vai pondo em palavras, Sophia cria poemas encantatórios e um mundo sedutor; mas só quem pára e está atento e se purificou para sintonizar com ela saberá acolhê-los e deixar-se seduzir e encantar por eles. Suas palavras – em grande parte quase banais substantivos e verbos e adjectivos de significação objectiva e concreta – suas palavras caem no vazio e no silêncio da alma; elas são pingos de som que ecoam nos recessos da alma purificada, aí encontrando secretos sentidos que, à superfície da linguagem e das coisas, não se deixam adivinhar. E com eles - ela primeiro e depois nós -, vamos criando esse mundo novo e original, muito bom e belo. O mundo, a realidade mundana aparece a todos os homens, mas à poeta e aos que ela com seus poemas seduz, ele aparece de uma nova maneira, transfigurado. Esta nova aparição produz-se no cadinho da alma, nesse vaso mental onde todos sentimos o calor das emoções, delas se fazendo sentimentos. Sem dúvida que o corpo e o espírito também têm o seu papel, mas o laboratório está na alma.

Antes de entrarmos propriamente em qualquer dos poemas de Sophia, é bom citarmos os seus grandes temas poéticos, referidos numa antologia de poemas seus: o mar, a casa, o amor, a claridade, a transparência. E inspirados também na sua muito bela intervenção na Sociedade Portuguesa de Autores em 1964, por ocasião da entrega do Grande Prémio de Poesia atribuído ao seu LIVRO SEXTO, caracterizemos melhor a sua poesia, especialmente com citações extraídas desse texto:
Nos poemas de Sophia, há “a própria presença do real” descoberta pela poetisa com seu objectivo olhar. Com esse objectivo olhar, ela descobre a “felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas”. É assim isso como que um conhecer directo, sem a mediação de conceitos, do qual noutros textos deste blog se tem falado (7, 15, 42, 47).
Para Sophia, com efeito, a poesia é “uma perseguição do real” … “a busca atenta” do real, a procura de “uma relação justa” com as coisas e o homem; e um poema é “um círculo traçado à roda de uma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso”; é a iluminação do real, visto à luz da sua própria claridade e transparência. Somos feitos de “louvor e de protesto”: “se em frente do esplendor do mundo nos alegramos com paixão, também em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixão”.

Do oceano das benditas palavras por todos nós inventadas, comum património cultural, vejam-se as que Sophia escolhe e recolhe para criar este pequeno grande poema a que deu o título de MEIO DA VIDA, poema extraído precisamente do seu LIVRO SEXTO: “Porque as manhãs são rápidas e o seu sol quebrado // Porque o meio-dia / Em seu despido fulgor rodeia a terra // A casa compõe uma por uma as suas sombras / A casa prepara a tarde / Frutos e canções se multiplicam / Nua e aguda / A doçura da vida”.
O poema compõe-se de três estrofes, tendo cada uma o seu núcleo semântico, à volta do qual se associam outras objectividades sempre representadas por palavras. A objectividade nuclear representada na primeira estrofe é “manhãs”, à qual se junta que elas, as manhãs, “são rápidas e o seu sol quebrado”; a da segunda estrofe é “meio-dia”, de que se diz que “seu despido fulgor rodeia a terra”; a da terceira estrofe é “A casa”, à qual se refere, antes de mais o resto do poema: ela “compõe uma por uma as suas sombras”, “prepara a tarde”, na qual “frutos e canções se multiplicam” e aparece “nua e aguda / a doçura da vida”.
Quanto às manhãs, “porque as manhãs são rápidas”, elas estão contidas num só verso, que constitui a primeira estrofe; ao “meio-dia” atribui-se a segunda estrofe, composta de dois versos. A terceira estrofe, feita de cinco versos, está toda por conta do terceiro núcleo semântico (“A casa”), que é dos três o mais importante, assim a ele se referindo também as duas primeiras estrofes, e portanto todo o poema. Veja-se como “A casa” está no início dos dois versos centrais do poema, havendo três versos antes, e outros tantos depois.
À volta de “A casa”, portanto, traça-se “um círculo”, como diz a autora, “um círculo onde o pássaro do real fica preso”. Que real será este, assim designado? De toda a rede ou tecido do poema, feito sobretudo de palavras de significação objectiva mas também de algumas com significação só gramatical – será até a estas que se deve a rede ou tecido que é o poema – emerge assim do seu centro, como gema de alto valor, “A casa”, um dos temas fundamentais da poesia desta autora, como já vimos. Mas que valor de sentido - sentido poético, com certeza - haverá nesta expressão? O título do poema ajudará a responder. Nesse central significante tão simples, mesmo banal, está a figura humana em revelação a si própria: o sujeito poético, antes de mais, (que já viveu as suas rápidas manhãs e o fulgor despido do seu meio-dia e agora prepara a sua “tarde”, tarde prenhe de “frutos e canções” em que se desvela “nua e aguda / a doçura da vida”), mas também nós mesmos, se quisermos, agora já fora do simbólico “circulo” do poema, mau grado a amarga realidade do tempo em que vivemos.

sábado, 17 de março de 2012

55 - Ainda sobre o Novo Acordo Ortográfico

No princípio era a palavra oral. Foi com ela que os humanos começaram a comunicar entre si e se constituíram como seres humanos. Mas depois, eles criaram o artefacto da palavra escrita, que é uma forma de comunicar mais elaborada e duradoura. A oralidade começou quando apareceu o ser humano, o qual é por natureza pensante e falante, enquanto que, da escrita, ele virá a ser só inventor.
E ao inventarem a escrita, que agora se junta à oralidade, os humanos iniciaram um perene e recíproco relacionamento entre a palavra escrita e a palavra oral, as duas sendo, muito embora com características diversas, a expressão ou a materialização do mesmo verbo mental. São duas irmãs com que nós linguisticamente nos entendemos uns aos outros, devendo nós também entender-nos com ambas, nessa relação de semelhança que também as distingue.
Se a linguagem oral é natural e espontânea e por isso tendencialmente descuidada, já a linguagem escrita, por ser um artefacto, é mais cuidada e duradoura. Ao ser produzida, a primeira é mais veloz, quase à velocidade do pensamento a expressar; enquanto que a segunda é sempre muito mais lenta, pois que mesmo o escrever “ao correr da pena” é geralmente mais lento que o pensar e o falar. Como a primeira é espontânea e produzida em sons, ela facilmente se evola e desaparece, são palavras que o vento leva; ao passo que a segunda, produzida em grafemas, deixa um produto mais elaborado e permanente.

Sem poder perder a sua relação com a oralidade, e sendo um artefacto duradouro que aí fica, a linguagem escrita, mesmo independentemente dos conteúdos que veicula, ela própria, por si mesma, é já um produto cultural onde se devem guardar memórias culturais. Este é, por exemplo, o caso de alguns vestígios de línguas anteriores que, muito embora já tenham caído em parcial desuso na oralidade, constituem um meio precioso para nos ajudar a reconhecer famílias de palavras na nossa língua, assim nos levando não só a escrevê-las correctamente, como ainda a captarmos de uma forma mais perfeita o seu significado.
Por isso, quanto às assim denominadas “consoantes mudas”, em vez de lhes chamarmos “consoantes mudas”, chamemos-lhes “consoantes etimológicas”. Seriam “consoantes mudas” se as olhássemos na perspectiva da oralidade, mas elas não são oralidade mas escrita. E a escrita não é papel químico para passar a oralidade para suporte estável. A lentidão e a ausência de circunstância viva com que habitualmente a escrita é produzida são prova disso mesmo. A escrita não é serva da oralidade, muito embora esta sua irmã seja muito mais velha, já que tem a idade do seu pai falante. Sendo irmãs, elas são também dois domínios diferentes. Não sendo para transcrever a oralidade, a escrita cumpre outras funções: ela serve sobretudo para dar perenidade a conteúdos verbais, transmiti-los à distância espacial e ainda para fazer obra de arte literária.

Por isso, como artefacto que é, a palavra escrita não é para andar a bater constantemente pelas praças e calçadas, sempre sujeita aos maus tratos das deficiências ou alterações de pronúncia, mas para estar aí a testemunhar sobre a sua origem, a evidenciar semelhanças com outras da mesma família etimológica na mesma língua, e com palavras parecidas de outras línguas, tudo em virtude de todas se fundarem no mesmo étimo. Num mundo globalizado em que precisamos de conhecer outras línguas que agora nos estão surpreendentemente tão próximas ou, pelo menos, ter delas alguns rudimentos, as consoantes etimológicas prestam-nos o seu serviço.
Conclui-se então que uma boa ortografia deve guiar-se por dois critérios, em compromisso um com o outro: o critério da pronúncia ou da oralidade, mas também o critério científico-etimológico. Assim, se é importante para uma correcta grafia o critério da pronúncia, não é menos relevante o critério científico-etimológico que pede para se escrever “fracção” e não “fração”, “faccioso” mas também “facção” e “factura”,”rubrica” e não “rúbrica”, assim até corrigindo neste último caso a pronúncia. Porque uma língua, tal como nós, precisa de memória.

segunda-feira, 12 de março de 2012

54 - Surfando no Oceano da Palavra Poética - III

Olá! No derradeiro texto da sua “Obra Poética”, o qual leva o título de “O que sei de Poesia”, um poeta nosso, especialmente aludindo a opiniões de amigos e poetas ou citando-os mesmo, procura definir “poesia”. E então, entre o mais, ele escreve: 1 – “a poesia é (…) uma forma de mediação”, convocando “as forças benfazejas”, ou tentando ”exorcizar as forças maléficas”; 2 – é “um presságio do sul”; 3 – é “uma encantada, encantatória e desesperada tentativa de captar a essência do mundo”; 4 – “a poesia é para mudar a vida”.
Não aprecio especialmente as duas primeiras definições, nem a última; mas já aceito a terceira, embora com um reparo: que a poesia é uma “encantada e encantatória tentativa de captar a essência do mundo”, ela é; mas uma tentativa “desesperada”, eu não penso que ela seja.
A poesia pura não é arma, não é instrumento de mudança, mas sim puro prazer para fruir, pura delícia feita de palavras, embora se possa admitir que o gozo dessa delícia – e muitos a poderão gozar – possa ajudar depois a mudanças mesmo políticas. Porque a poesia pura, tal como a nossa vida, não são meios para nada, mas só fins de si mesmas e para si mesmas.

Quando um artesão se põe a fabricar uma flauta para ganhar dinheiro para o seu passadio, isso é bem diferente de quando um artista se põe a usar a mesma flauta, mas só por prazer! É certo que o artista também pode usá-la para ganhar dinheiro, mas não é disso que aqui se trata. Aqui, é só pegar-lhe e tocá-la por prazer, por mero gozo da delícia que nasce dos seus sons e melodias. Aqui, a acção de tocar flauta extingue-se em si mesma, é por si mesma, é fim e não meio para atingir outro fim.
Assim também sucede com as palavras que inventámos. Elas servem para isto e servem para aquilo e aqueloutro, mas também simplesmente elas podem não servir para nada … porque na poesia elas simplesmente são esse tecido verbal para ser gozado! A poesia é a oferta de prazer de um jardim de flores e sentidos a desvendar, muitas vezes até surpreendentes, ou uma sala de segredos que poderão ressoar e abrir-se em mundos originais e belos, segredos sempre metidos em suas “conchas puras”, as nossas benditas palavras.

A poesia é, pela palavra, o encontro com um mundo fontal e quase mítico, em que tudo esteja bem, em que tudo seja bom. Ela é o encontro gozoso com a vida, a possibilitação verbal do “fascínio pela vida, pela vida breve neste planeta azul”, fascínio que deve acontecer a toda a gente. Ela nasce do nosso corpo (pelo seu ritmo, musicalidade, eufonias e emoções), nasce também da alma (pela variedade dos sentimentos) e nasce ainda do espírito (pela invenção das exactas palavras), destinando-se, ela própria, a poesia pura, a ser gozo conjunto do espírito e da alma e do corpo. Delícia total, total prazer para ser gozado pelo homem todo! E então, como é que é possível este precioso bem, possuído e gozado por alguém, não se difundir facilmente a outrem? Com o sabor da poesia, a vida torna-se mais gostosa. Eugénio e Sophia, entre outros, são poesia pura.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Texto 53 em Nova e Corrigida Edição

1- Olá! Nós somos feitos de mudanças, feitos de permanência e de mobilidade: nós somos, indo; mas também nós vamos, sendo. Se é verdade que, só nas mudanças temporais, nós encontramos e reconhecemos a nossa identidade, também é certo que esta está para além daquelas, embora nelas a tenhamos de preservar. Conscientes das mudanças, nossas e do mundo, nós somos essa consciência.
Ora, as palavras são como nós: elas vão mudando, mas, nas mudanças, a sua identidade terá de ser preservada; elas são movediças como areia de dunas, mas também possuem a solidez das pedras. Em suma, “verba volant, scripta manent”, ou seja, a palavra oral voa, mas a escrita permanece. Por isso, se bem que não possa deixar de atender à oralidade, só a palavra escrita, para além de ser produto histórico e cultural de um povo, pode ser referência estável para a palavra oral.
Como é que então a palavra oral e a sua pronúncia podem constituir-se como exclusiva norma ortográfica, ou seja, como norma da palavra escrita, como pretende o novo Acordo Ortográfico (AO)? Não é a solidez do edifício andar sempre a reboque da fluidez das dunas?
Para resolver dificuldades de escrita, o AO sugere a utilização da “norma culta da pronúncia”. Mas como, se ela não está definida e até é uma contradição nos termos? Contradição porque a pronúncia é sempre movediça, não podendo assim constituir-se, pelo menos em exclusão, em norma de escrita: ela é própria do discurso oral, que, como sabemos, se pratica com uma grande variedade de pronúncias.
Se a norma da oralidade existe, ela é produzida pelos falantes que também sabem ler e escrever, e com essa escrita enriquecem e normalizam a oralidade, a partir da escrita, a qual tem as suas regras ortográficas. (Veja-se o caso oposto de uma pessoa iliterata: aprendendo a oralidade só por ouvido – algumas vezes até em convívio quase só com outras pessoas iliteratas -, ela não terá uma oralidade muito deficiente?) Mas tal norma culta de pronúncia, se existir, será sobretudo para normalizar a oralidade geral e não a escrita. Ao avançar-se para um novo AO só com base na pronúncia da palavra oral, cede-se ao aperto do facilitismo e do utilitarismo, arrasando o valor histórico e cultural das palavras que, ao vê-las assim de relance numa folha de papel, logo muitas delas se nos apresentam desfiguradas, quais frangas depenadas em guerras de capoeira.

2 - Mas tal como o novo AO, assim também todas as nossas palavras são frágeis, como frágeis nós somos. E se alguma palavra há que nos garanta alguma segurança e permanência, essa é a palavra escrita. É também nesta palavra escrita que facilmente podemos reconhecer famílias de palavras provenientes de um tronco ou étimo comum.
A palavra “frágil”, por exemplo, a par de muitas outras, todas provêm do mesmo tronco “fra(n)g-“ ou “frac-“, o qual aparece no verbo latino “frang(ere)”, que significa “partir”, “abater”, tanto em sentido físico como moral. Da primeira forma ou variante desse tronco comum, entre outras, vieram-nos as seguintes palavras: “frango”, “confrangedor”, “refrangência”, “frágil”, “fragor”, “fraga”, “fragoso”, “fragilidade”, “fragmento”, “náufrago” e “naufrágio”. Da segunda variante do tronco comum, temos, por exemplo, as seguintes: “fractura”, “fracção”, “refracção”, “infracção”, “refractário”.
“Fragor” é o barulho produzido por objecto que se parte; “fragmento” é um pedacinho de uma unidade maior que se partiu; “naufrágio” é aquilo que acontece quando a nau ou navio se parte; “fractura” é o acto ou o efeito de partir alguma coisa. E “frango”, o que será? Os dicionários dizem que a origem desta palavra é obscura, mas eu aventuro-me a dizer que ela pertence a esta família de palavras e significa um animal muito nosso familiar, comestível, que ainda tem uma vida frágil, não tendo alcançado portanto a rijeza de galo! Pois, em linguagem popular, o que é um “franganote” ou um “franganito”? Não é um rapaz ou rapazola ainda tenro e imberbe?
Há ainda a palavra “frangmalho”, que vai caindo em desuso mas que eu ouvia dizer frequentemente aos meus pais quando criança, no tempo das colheitas, e remete para os pedacinhos pequeninos quase pó, em que era feita a palha do cereal na eira, a poder de ser batida e partida com o malho. Mas tal como os malhos quase desapareceram das eiras, assim também com eles vai desaparecendo a palavra.

3 - De pedacinhos pequeninos somos nós feitos - partículas e energia que nos chegam dos quatro cantos do universo – tal como, afinal, de pequeninos são também as nossas palavras, feitas de raiz e tema, mas também de características temporais e modais, bem como ainda de prefixos e infixos e sufixos, tudo próprio de uma mas também de muitas outras. Mas, no novo AO, várias das palavras acima referidas – precisamente as que nos vêm da segunda variante do tronco comum -, perdem a consoante surda da raiz, consoante que tem servido para ajudar a identificar a origem etimológica da palavra e de outras da mesma família, bem como para abrir a vogal anterior.
Pimpolho menino ou menina vai à escola para aprender a ler, escrever e contar. E a falar, não vai também aprender? Quanto à oralidade, vai aperfeiçoá-la em contacto com a leitura e com a escrita e no convívio da aula, sempre sob a orientação do professor.
Por ser por natureza movediça, a oralidade precisa de uma contínua referência à escrita, que lhe dá alguma estabilidade. Por sua vez, a escrita não pode ser mouca em relação à oralidade: a escrita até segue amiúde a pronúncia da oralidade, mas não é sua serva. Elas são duas irmãs que não podem desentender-se. Mas, na escrita de uma língua, - na escrita em si mesma e não só nos produtos que ela veicula -, deve guardar-se memória cultural dessa língua e também do povo que a fala, em discurso oral.

Nota: Por ter procedido a algumas correcções ao texto 53, aqui fica publicado em nova edição. Obrigado.

segunda-feira, 5 de março de 2012

53 - O Frágil Acordo Ortográfico e outras Fragilidades

Olá! Nós somos feitos de mudanças ou de tempo, feitos de permanência e de mobilidade: nós somos, indo; mas também nós vamos, sendo. Se é verdade que, nas mudanças temporais, nós encontramos e reconhecemos a nossa identidade, também é certo que esta está para além daquelas, embora nelas a tenhamos de preservar. Conscientes das mudanças, nossas e do mundo, nós somos essa consciência.
Ora, as palavras são como nós: elas vão mudando, mas, nas mudanças, a sua identidade terá de ser preservada; elas são movediças como areia de dunas, mas também possuem a solidez das pedras. Em suma, “verba volant, scripta manent”, ou seja, a palavra oral voa, mas a escrita permanece. Por isso, só a palavra escrita, para além de ser manancial de história e de cultura de um povo, pode ser referência estável para a palavra oral.
Como é que então a palavra oral e a sua pronúncia podem constituir-se como norma ortográfica, ou seja, como norma da palavra escrita, como pretende o novo Acordo Ortográfico (AO)? Não é a solidez do edifício andar a reboque da fluidez das dunas?
Para resolver dificuldades de escrita, o AO sugere a utilização da “norma culta da pronúncia”. Mas como, se ela não está definida e até é uma contradição nos termos? Contradição porque a pronúncia é sempre movediça, não podendo assim constituir-se em norma de escrita: ela é própria do discurso oral, que, como sabemos, se pratica com uma grande variedade de pronúncias.
Se a norma da oralidade existe, ela é produzida pelos falantes que também sabem ler e escrever, e com essa escrita enriquecem e normalizam a oralidade, a partir da escrita, a qual tem as suas regras ortográficas. (Veja-se o caso oposto de uma pessoa iliterata: aprendendo a oralidade só por ouvido – algumas vezes até em convívio quase só com outras iliteratas -, ela não terá uma oralidade muito deficiente?) Mas tal norma culta de pronúncia, se existir, será só para normalizar a oralidade geral e não a escrita. Como é que então se avança para um AO, com base na oralidade? Cedeu-se ao aperto do facilitismo e do utilitarismo, arrasando o valor histórico e cultural das palavras que, ao vê-las de relance numa folha de papel, logo muitas delas se nos apresentam desfiguradas, como frangas depenadas em guerras de capoeira.

Mas tal como o novo AO, assim também todas as nossas palavras são frágeis, como frágeis nós somos. E se alguma palavra há que nos garanta alguma segurança e permanência, essa é a palavra escrita. É também nesta palavra escrita que facilmente podemos reconhecer famílias de palavras provenientes de um tronco ou étimo comum.
A palavra “frágil”, por exemplo, a par de muitas outras, todas provêm do mesmo tronco “fra(n)g-“ ou “frac-“, o qual aparece no verbo latino “frang(ere)”, que significa “partir”, “abater”, tanto em sentido físico como moral. Da primeira forma ou variante desse tronco comum, entre outras, vieram-nos as seguintes palavras: “frango”, “confrangedor”, “refrangência”, “frágil”, “fragor”, “fraga”, “fragoso”, “fragilidade”, “fragmento”, “náufrago” e “naufrágio”. Da segunda variante do tronco comum, temos, por exemplo, as seguintes: “fractura”, “fracção”, “refracção”, “infracção”, “refractário”.
“Fragor” é o barulho produzido por objecto que se parte; “fragmento” é um pedacinho de uma unidade maior que se partiu; “naufrágio” é aquilo que acontece quando a nau ou navio se parte; “fractura” é o acto ou o efeito de partir alguma coisa. E “frango”, o que será? Os dicionários dizem que a origem desta palavra é obscura, mas eu aventuro-me a dizer que ela pertence a esta família de palavras e significa um animal muito nosso familiar, comestível, que ainda tem uma vida frágil, não tendo alcançado portanto a rijeza de galo! Pois, em linguagem popular, o que é um “franganote” ou um “franganito”? Não é um rapaz ou rapazola ainda tenro e imberbe?
Há ainda a palavra “frangmalho”, que vai caindo em desuso mas que eu ouvia dizer frequentemente aos meus pais quando criança, no tempo das colheitas, e remete para os pedacinhos pequeninos quase pó, em que era feita a palha do cereal na eira, a poder de ser batida e partida com o malho. Mas tal como os malhos quase desapareceram das eiras, assim também com eles vai desaparecendo a palavra.

De pedacinhos pequeninos somos nós feitos - partículas e energia que nos chegam dos quatro cantos do universo – tal como, afinal, de pequeninos são também as nossas palavras, feitas de raiz e tema, mas também de características temporais e modais, bem como ainda de prefixos e infixos e sufixos, tudo próprio de uma mas também de muitas outras. Mas, no novo AO, várias das palavras acima referidas – precisamente as que nos vêm da segunda variante do tronco comum -, perdem a consoante surda da raiz, consoante que tem servido para ajudar a identificar a origem etimológica da palavra e para abrir a vogal anterior.
Pimpolho menino ou menina vai à escola para aprender a ler, escrever e contar. E a falar, não vai também aprender? Quanto à oralidade, vai aperfeiçoá-la em contacto com a leitura e com a escrita e no convívio da aula, sempre sob a orientação do professor.
Por ser por natureza movediça, a oralidade precisa de uma contínua referência à escrita, que lhe dá alguma estabilidade. Por sua vez, a escrita não pode ser mouca em relação à oralidade, para não se sobrecarregar de atavios culturais. Porém, na escrita de uma língua, - na escrita em si mesma e não só nos produtos que a usam -, deve guardar-se memória cultural de si mesma e também do povo que a fala, em discurso oral.