domingo, 27 de novembro de 2011

Pistas de Leitura do Texto 43

Surfando no oceano das palavras:
- Na praia, a benignidade do mundo;
- Surfando no mar e ouvindo a melopeia sinfónica de Xerazade;
- Dois atrevimentos: um lema e um desafio;
- O melhor remédio contra a opressão do mercado de capitais e um dos mais eficazes alimentos para restabelecer e firmar a nossa comum humanidade.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

43 -Surfando no Oceano das Palavras

Surfando no oceano das palavras

Olá!
Ando agora de novo por esta praia, pés mergulhando nas águas vivas e mansas, ouvidos e olhos inebriando com o branco marulhar das ondas. A maciez, a frescura, o ar lavado, o murmúrio, a distância nítida do horizonte, o azul do mar e do céu, tudo isto, toda esta benignidade do mundo que o meu corpo acolhe apazigua-me a alma e ressoa-me no espírito.
Lembro-me muito bem como se hoje fosse, nós os três também nesta mesma praia, Alfa e Ómega comigo. Eles fazendo surf no mar – já mestre nesse ofício ele, e ela promissora aprendiz –, e eu, em enxuta areia passeando na praia. Ele, Ómega, o Grande, qual deus Neptuno, de pé e de braços abertos, sobre a crista das ondas imperando nos mares; ela, não longe dele, menina Alfa na prancha deitadinha, regalando-se no berço ondulante que o Oceano lhe oferece, assim feito benigno por acção do seu deus! Ele, em mundo circular, bem pertinho de Alfa, e por ela olhando; ela, menina e princípio de todos os elementos com que se nomeiam os seres que aparecem neste mundo, menina e mãe do seu nome e de tudo e do nome dele também. Então, em realidade, os dois surfando no mar e eu passeando em seco na praia. Hoje, em realidade passeando eu sozinho na areia dura da praia, mas em sonho vogando em mar manso no macio barco de Sindbad, embalado na melopeia da “Suite Sinfónica Xerazade” de Rimski – KorsaKov…

Que se há-de dizer mais, nesta actual circunstância, depois de esse encontro ter acontecido? Simplesmente duas coisas atrevidas, que não sei se mas aceitam, mas mesmo assim as digo. A primeira é a modos que um lema a poder guiar-vos, caros jovens, durante a vossa vida de estudantes, em ordem à vossa futura entrada no mercado de trabalho, nestes tempos difíceis. Com efeito, para os jovens estudantes, como é o vosso caso, parece que o grande lema pessoal a curto prazo se pode sintetizar no seguinte: Os melhores alunos têm sempre emprego garantido. Foi o caso da Inês Andrade (notícia da Antena 1, em 21 de Setembro) que, formada aqui com 19 valores em piano, está tocando em Nova Iorque.
O segundo atrevimento, dos dois o mais arriscado, é pôr-vos perante um desafio, o qual leva a uma revolução global urgente e necessária. Segundo penso, o vosso grande desafio, como cidadãos e cidadãs deste país, pode sintetizar-se no seguinte: Tal como não se negoceia com o sangue - sangue que vai para e está nos bancos de sangue e nos hospitais para decisivo alimento das nossas vidas em risco -, assim também não se pode negociar (pelo menos com usura ou especulação) com o dinheiro, pois que o dinheiro é o sangue das nações, em ordem a que as pessoas possam produzir bens e possam comprá-los, para poderem viver. Os políticos das nações têm de ser capazes de regular - temos de lhes exigir que regulem - as finanças das nações, tirando-as das avaras mãos desses especuladores de sangue. Para isso os elegemos; para isso pagamos os nossos impostos. Este é o grande desafio, esta a grande revolução mental que os jovens terão de protagonizar no seu país! Jovens lúcidos, conscientes, autónomos, responsáveis, exigentes, activos e excelentes, excelentes no trabalho e na vida.
Tudo isto afinal para eles, em primeiro lugar, mas também para que a Europa não morra. Não a perigosamente bela namoradinha de Zeus, por este deus encontrada na praia, mas sim esta Europa exangue e antiga que, ainda assim, é a nossa casa comum.




sábado, 19 de novembro de 2011

Pistas de Leitura do Texto 42

O nada que eu sou:
- Eu sou o “eu mental”, ou simplesmente “sou nada”?
- Ser nada” é “ser consciência de ser nada”?
- O “ser consciente”, sem “teorias”, de Alberto Caeiro;
- Krishnamurti: “feliz é o homem que é nada”;
- Sócrates: o ensino sem conteúdos, ou o “pôr a pensar”;
- Platão: o ensino com conteúdos ou ensino de teorias, e portanto a valorização do “eu mental”.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

42 - O Nada que eu Sou

Olá!
Segundo a sabedoria oriental e não só (15), quando eu vejo-vejo uma flor, eu vejo mesmo uma flor, e não o conceito de flor objectivado numa flor. Com este e outros conceitos é que começa e depois se desenvolve, com mais conceitos e preconceitos e ideologias, o meu “eu mental”! Rigorosamente, porém, eu não sou o “eu mental” que habitualmente trago comigo. Na fonte, eu não sou isso, e é para essa fonte e esse primeiro estado que devo caminhar. E ainda bem que não sou o “eu mental” porque, assim, sem qualquer mediador a interpor-se, eu estou em contacto directo e imediato com a flor.
Uma flor é uma flor, e eu … sou nada! Uma flor não pode ser nada, e eu não posso ser flor. E então, ser nada será mais ou menos do que ser flor? Nem mais nem menos, é diferente!
Quando digo sou nada, estou dizendo que sou consciência de ser nada. Mas eu só posso dizer que sou consciência de ser nada, começando por ser consciência num corpo, e a consciência de um corpo. A partir daí, eu sou a consciência da flor, ou a flor consciencializada. Eu sou a consciência do Universo ou o Universo consciencializado. (7)
Citemos Alberto Caeiro: “Dizes-me: tu és mais alguma cousa / Que uma pedra ou uma planta. / Dizes-me: sentes, pensas e sabes / Que pensas e sentes. / Então as pedras escrevem versos? / Então as plantas têm ideias sobre o mundo? // Sim: há diferença. / Mas não é a diferença que encontras; / Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas: / Só me obriga a ser consciente. // Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei. / Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.” (Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, 271)

Agora, ouçamos Krishnamurti, que está coloquiando com uma jovem amiga: “A dignidade é algo muito raro. Um cargo ou uma posição de respeito dá «dignidade». É como vestir um casaco. O casaco, aquilo que se veste, dá «dignidade». Um título ou uma posição dão «dignidade». Mas se aos homens forem retiradas essas coisas, muito poucos ficarão com aquela qualidade de dignidade que vem com a liberdade interior de se ser nada. (…) A dignidade não pode ser possuída nem cultivada, e estarmos convencidos de que somos «respeitados» é estarmos centrados em nós mesmos, o que é algo insignificante, pequeno. Ser-se nada é estar-se livre dessa ideia. Ser – não dentro de um qualquer estado particular – é a verdadeira dignidade. (…) Feliz é o homem que é nada.” (Cartas a uma jovem amiga, ps 32 e 35)
Mas depois destas Cartas, por muitos anos e lugares em que conferenciou sobre assuntos de espiritualidade, Krishnamurti não se cansou de glosar o assunto em epígrafe – o nada que eu sou -, tal era a importância que lhe dava. Eis alguns desses comentários, que bem merecem ser citados:
“Se não tivéssemos qualquer crença (…) sentir-nos-íamos totalmente perdidos, não era? E não é esta aceitação da crença o disfarce desse medo – do medo de no fundo sermos nada, de sermos vazio? Afinal, uma chávena apenas tem utilidade se estiver vazia (…) Uma crença religiosa ou política impede, obviamente, a compreensão de nós mesmos.” (A Vida, p.61)
“Queremos possuir, porque sem a posse não existimos. As posses são muitas e variadas. (…). Sem as posses o “eu” não existe, o “eu” é a posse, a mobília, a virtude, o nome.” (ob.cit. p.82)
“A criação só pode ter lugar na negação, que não é o oposto do positivo. Ser nada não é a antítese de sermos alguma coisa.” (ob. cit. p.191)
“Não ser nada é o princípio da liberdade. Portanto, se vocês forem capazes de sentir, de investigar isto, descobrirão, à medida que vão tomando consciência, que não são livres, que estão amarrados a muitas coisas diferentes”. (ob. cit. p.384)
“Todos temos medo de “ser nada”, porque todos queremos ser alguma coisa”. (O Sentido da Liberdade, p.46)
(Em razão do nosso “eu”, nós estamos identificados com os rótulos): “a casa, o nome, a mobília, a conta bancária, as nossas opiniões, os nossos estímulos. Somos todas estas coisas – sendo cada uma delas designada por um nome. As coisas tornaram-se importantes, e também os nomes, os rótulos, e portanto o centro é a palavra.” (Mas) “se não há nenhuma palavra, nenhum rótulo, não há centro, não é verdade? Há uma dissolução, um vazio – não o vazio do medo, que é uma coisa completamente diferente. Há um sentir que somos nada. (…) Deixa de haver centro a partir do qual actuamos” (ob.cit. p.236).
Enfim, embora não implicando que eu inutilize os conteúdos científicos e práticos da mente, do que eu preciso é da revolução de me sentir e ser o vazio total (A Vida, p.322).

Atendamos ainda ao caso do ateniense Sócrates, o qual foi acusado pelo tribunal da cidade de ter corrompido a juventude, e por isso condenado à morte. Mas Sócrates negou sempre esse crime: nunca desviara dos bons caminhos a juventude! E tinha toda a razão porque, na realidade, Sócrates não ensinava nada, ou melhor, o seu ensino não tinha conteúdos. Perante o tribunal, e quanto aos jovens, Sócrates negou sempre a pés juntos que os tivesse feito maus, mas também nunca afirmou que os tivesse feito bons! Portanto, Sócrates, aos jovens, nem os fez maus nem bons, mas simplesmente os pôs a pensar! O que a seguir viria – fazerem-se bons ou maus – já não era com ele, mas com eles e com as circunstâncias em que viveriam.
Com Platão, porém, as coisas já não foram assim. Este discípulo de Sócrates já intentava ensinar conteúdos, já tinha teorias sobre as coisas e sobre a vida e sobre o sentido que ele julgava ela ter, como se vê bem, por exemplo, no mito da caverna. Neste mundo, nós somos sombras, nós estamos presos na caverna do corpo, muito embora, de quando em vez, vislumbremos lampejos da verdadeira e luminosa realidade que fomos antes, no hiperurânio, e onde havemos de ser de novo. Ora, disto, que é uma teoria, eu já posso dizer que para mim é uma coisa boa ou má, que é razoável ou não.
Se tirarmos a Platão todas as suas teorias, ficaríamos simplesmente com o ensino de Sócrates? Não ficaríamos com certeza porque, a Platão, não interessava directa e formalmente a actividade do pensar, como interessava ao seu mestre, mas a teoria veiculada por tal actividade.
Mas o mais importante, de facto, é pormo-nos a pensar e habituarmo-nos a pensar, como fazia Sócrates; é sentirmos a perplexidade da vida e sabermos lidar com ela; é sabermos governar-nos, assim deixando de ser imbecis. É termos consciência, ou melhor, é sermos conscientes, ou consciência, como nos diz Caeiro, e afinal também Krishnamurti.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Pistas de Leitura do Texto 41

O livro “LIVRO” de J. L. Peixoto:
- O prazer espiritual;
- Livro em ideia, que passa de mão em mão; depois tornado “Livro”, por narração de Livro;
- “Livro” produto e Livro personagem, em relação ao autor;
- A presença e o trabalho do leitor, a caminho do prazer;
- A pontuação, as incertezas do narrador, a imposição de nomes, a ternura e a repulsa, a arte de narrar e a beleza de escrita, a ironia, o sagrado;
- “Livro” e leitor, reciprocamente transformados;
- “Livro” e leitor, perante a morte;
- A morte, uma negra realidade ou uma realidade branca?
- O gozo do prazer de ler “Livro”.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

41 - Sobre "LIVRO" de José Luís Peixoto

Olá, meninas e meninos!
Estou sentado à mesa onde faço as minhas leituras, das quais recolho e fruo espiritual prazer. Este prazer – que por vezes me inunda de alegria ou pena ou carinho ou repulsa e também comoção – é ele em mim motivado pelo espírito ou pela alma? Por certo que é pelo espírito (activo e impassível) e não pela alma (passiva e passível de todas as paixões), não é verdade? Motiva-o o espírito, mas a alma, vindo-lhe do espírito mas também de todo o corpo, é que o sente! É um prazer tão ou mais intenso como aquele que com a minha alma eu sinto quando, a outra mesa sentado, eu estou alimentando o meu corpo e o meu cérebro, ou deitado estou na cama, não dormindo mas depois ao acordar, sossegado, repousado, outra vez carregado de energia.
Na minha mesa de leituras, tenho hoje aqui à frente, de um José, um livro. Já por aqui passaram por este blog outros Josés. Um, com quem, calmamente, troquei brancas palavras sobre a morte; outro, também escritor, com quem estive numa gostosa e longa cavaqueira sobre um livro seu; e depois ainda um outro que, sendo embora Francisco, também podia chamar-se José, falando nós os dois, de uma forma sentida, sobre a actual descrença em Deus.
Tenho então agora à minha frente, nesta mesa de leituras … um livro de um José. Mas esta coisa assim indeterminada (de um livro e de um José) não pode estar aqui à minha frente! Digamos então que este (um livro de um José) é, bem determinadamente, o livro Livro do José Luís Peixoto: o livro que se intitula Livro.
Por meio de um primeiro narrador não personagem, o autor da narrativa começou por idealizar o livro, que fez passar de mão em mão. Quem primeiro apareceu com o livro foi uma mãe solteira, de má fama, que o depositou nas mãos do seu filho de seis anos. Mas depois, como ela tivesse de emigrar e o filho fosse ainda uma criança que pensava mais em pássaros do que em livros, ela entregou os dois ao cuidado de um pedreiro. Quando o rapaz se fez adolescente, o pedreiro pôs outra vez o livro nas mãos do rapaz, que, por sua vez, para firmar o namoro que tinha com uma menina, o passou para as mãos dela. Só que esta rapariga, tal como aquela outra mulher – mulher sem nome e de má fama – também teve de emigrar sozinha para França, levando o livro consigo. Aí, em Paris, por meio de um segundo nível de leitura do livro, conheceu um foragido português revolucionário e devorador de livros, e casou com ele. Nasceu então Livro, personagem e segundo narrador, o qual se identifica com o livro. Ele narra e também escreve o livro, ele é o livro, e o livro é ele, Livro.
Mas Livro, conversando com o leitor, sempre dentro da narrativa, diz-lhe que este nunca saberá tudo acerca dele. Ora, em princípio, um leitor pode saber tudo sobre um narrador personagem, sempre que ele ocorra, pois esse narrador esgota-se no próprio texto que vai narrando e neste caso também escrevendo, sendo só e tudo o que aí sobre ele se pode observar. Mas se Livro, personagem e narrador, diz ao leitor que nunca poderá saber tudo acerca dele, então é porque, neste caso, ele não se esgota na imaginada narrativa, tal é a sua quase-identificação com o autor. Não se esgotar na narrativa é a condição negativa para a existência da tal quase-identificação com o autor. Mas agora, positivamente, há pelo menos mais duas importantes semelhanças entre os dois, pois que ambos, autor e Livro, falam e escrevem em português e têm a mesma idade, já que ambos nasceram em 1974. Livro diz que tem 36 anos, e o autor – ficamos a sabê-lo por fora da narrativa e só pela orelha esquerda da capa do livro em papel – tem também a mesma idade!
É claro que também existem diferenças entre os dois. A primeira e principal de que todas as outras derivam, é que o autor é um ser real, e Livro é só e simplesmente imaginado, literariamente imaginado pelo autor, que lhe dá por exemplo a ciência que deve possuir para fazer a exacta narração de tudo e só daquilo de que o autor o incumbe. Mas é também o autor que lhe quer imprimir essa profunda semelhança e quase-identificação com ele mesmo, de tal maneira José, o autor, se revê nessa figura narradora e naquilo que ela narra. Livro produto e Livro personagem narradora transformaram-se no autor, e o autor transformou-se neles.

Não adormeçam, meninas e meninos, não adormeçam nem virem os olhos e as mãos para outras leituras ou outras coisas a fazer! Vejam se conseguem levar esta tormentosa leitura até ao fim, porque podem colher algum prazer com ela. Olhem que o José autor de textos está ali a ouvir e a ler este outro texto com toda a atenção, vê-se muito bem!
Ao contrário dos romances tradicionais, que são claros e acabados, produtos prontos para o leitor consumir, esta narrativa nem é clara nem acabada. Ela convoca constantemente o leitor a ter o seu trabalho de interpretação do que vai lendo à superfície textual. À primeira vista, parece até que o texto está desfocado, assim exigindo redobrada atenção ao leitor, que só encontrará a sua nitidez e clareza, fora e acima da lógica e pensamento tradicionais. É certo que o discurso literário, pela sua linguagem figurada, está sempre acima e fora do discurso denotativo de um ensaio. Mas nesta obra as palavras, que não são muitas – os diálogos, por exemplo, são feitos mais de silêncios que de palavras -, elas assumem aqui um peso invulgar, pelo arrojo e riqueza imagística que comportam. E em virtude desta riqueza e densidade das palavras, o leitor é instado a parar para as acolher, as relacionar com outras, as entender e, finalmente, as saborear em toda essa sua amplitude significante. Porque nesta narrativa, se pararmos nas palavras e as olharmos com atenção e ternura, nós vamos encontrar uma fresca nitidez de significação e sentido, para a qual notoriamente contribui – não podemos esquecer – uma muito cuidada pontuação do texto.
Para que a aérea rede simbólica das actuais narrativas literárias possa, para nós, ser objecto de conhecimento e ter sentido, é sempre preciso que elas estejam agarradas à terra, ancoradas a pedra ou pedras não movediças. Ora, uma destas âncoras, no vertente caso desta narrativa, é precisamente a pontuação. Tão meticulosa e precisa e importante é ela que, daquele encontro secreto de uma mulher e de um homem por detrás da fonte nova, ao cair da noite de um arraial na vila, resultou que uma preciosa vírgula é que foi fazendo caminho para o ventre da mulher! Mas…a quem pertencerá de facto esta vírgula, da qual irá nascer o tal bebé denominado Livro? Virá mesmo do homem que se encontrou com aquela mulher?
Por outro lado, Livro narrador confessa estar possuído de muitas incertezas. E, quanto a saber o que é a verdade, “Sim, já sei. O que é a verdade? Sim, já sei, não sei”. Pois é, meu caro Livro, pois é, caríssimo José, também eu sei que não sei o que ela é, a não ser que ela seja a fiel e silenciosa companheira do que é muito provável, sempre tenteada e confirmada e outra vez posta em causa e sempre o mesmo por aí fora. Aquela personagem caída no barranco morreu ou não morreu? Aquela velha, morta no caixão e decompondo-se sob a terra está morta ou está viva?
Há um costume entre nós, seres humanos, que me parece certo: é impormos nome às coisas e às pessoas. Elas aparecem-nos, e nós impomos-lhes nome. Com ele, elas saem do anonimato da inexistência e entram a existir. Em relação a nós, com isso, nós desalienamos o mundo. No caso de um texto literário, o autor pensa-as e, com pensá-las, nomeia-as primeiro com o verbo mental, mas depois, habitualmente, também lhes atribui um nome de palavra(s). Nesta narrativa, porém, três personagens existem, pelo menos, que não têm nome de palavras. A primeira é aquela mulher em cujas mãos o livro nos aparece pela primeira vez; a segunda é aquele homem portador do pesado malote, esquecido na estação de Austerlitz; a terceira é de novo uma mulher, uma portuguesa velhinha de oitenta e muitos anos, que morreu na estrada, abalroada pelo carro conduzido por Livro. Ou serão estas duas mulheres, uma só mulher? Se só uma são, então a mulher que introduziu o livro na narrativa, o qual depois foi personificado em Livro, é quem cessa de existir por via do acidente causado por Livro com o seu carro, quase no fim da narrativa. Certamente que, para o autor, elas têm um nome mental, embora não o tenham de palavras. E se o autor as quis deixar assim, será porventura para que cada um dos leitores lhes possa atribuir, só com seu verbo mental, um nome ou nomes para cada uma das duas, ou três!
Ao longo da narrativa, uma branca onda de ternura envolve muitas personagens, entre as quais os simples e diminuídos mentais e também o povo anónimo deserdado do bem-estar económico e social; mas também se levanta uma vaga negra que repele uma religião instalada e mancomunada com uma política prepotente e ensimesmada, paradas no tempo, quistos sebáceos e parasitas de um povo pobre e esquecido, negra vaga que afasta também revolucionários de pacotilha que fogem do país, também parasitas das famílias, intratáveis intelectualóides que passam uma vida indolente e inútil a remoer inutilidades ideológicas e ressentimentos por dores não sofridas e com desprezo por quem as sofre.
Não esquecer também aquelas quase inexcedíveis arte de narrar e beleza de escrita: o encadeamento dos diálogos na narração, quase todos feitos só de silêncios ou pouco mais; o pitoresco de um passo em que os pides prendem um bêbedo; a contenção e o peso das palavras; a riqueza vocabular; as formas inusitadas e muito belas de dizer; as figuras literárias e muitos outros passos da narrativa a ressumarem de ironia, tudo isto a exigir-nos demora, para de tudo colhermos prazer e podermos usufruir.
De facto, uma fina e profunda ironia alastra e corrói enraizadas ideias e ideologias e também instituições nelas inspiradas e construídas e depois quase eternizadas. A ideia do romance certinho, linear, acabado, pronto a consumir; as ideias de uma lógica e de uma ontologia com as suas verdades inconcussas; as ideias e ideologias de uma política e de uma religião conluiadas uma com a outra e manipulando o povo, como foi o caso da construção do posto da guarda na vila, que depois nunca teve agentes mas foi antro de prostituição. Há também a não comparência do presidente do conselho na inauguração da nova fonte porque cada uma das duas pessoas a quem competia fazer o convite à referida figura pensou que a outra já o tinha feito e por isso não o fez, ninguém depois explicando ao povo o motivo dessa ausência. Há ainda o caso de o Sermão do Encontro, na procissão dos Passos, não ser atendido por qualquer dos fiéis presentes, e outrossim, como já se referiu, a presença de um intratável e fanático revolucionário encalhado em ideias mortas, que de todo não podia ser o pai de Livro.
Mas, se este intratável rato de biblioteca não podia ser o pai de Livro, e também já acima se duvidou que tivesse sido uma outra figura masculina que se encontrou secretamente com uma mulher atrás do fontenário da vila ao cerrar de uma noite festiva, quem terá sido então o seu pai? E, já agora, quem terá sido a sua verdadeira mamã? Nós sabemos que uma vírgula, a qual é sempre um elemento literário, aqui se fez sémen para gerar nova vida no ventre de uma mulher. Será então esta mulher a verdadeira mãe de Livro? Quem são verdadeiramente os pais de Livro? Não pensem os meninos e as meninas que eu vou desvendar aqui e agora este delicioso imbróglio! Tão-somente lhes deixarei três chaves para poderem decifrar o enigma. É a primeira a “verosimilhança”: numa narrativa, é natural que qualquer personagem nasça de um pai e de uma mãe, por forma e por meios semelhantes àqueles que acontecem na vida real entre os seres humanos; a segunda, de alguma forma relacionada com a primeira, é aquela que se encontra na expressão “barriga de aluguer”; a terceira, última e decisiva chave, é a própria “inspiração literária do autor”, a qual nos indicará quem são os verdadeiros pais de Livro! Nada mais agora sobre este assunto se adianta, mas quem quiser fazer perguntas faça favor de comentar este texto, que talvez … que talvez se consiga responder!
Há ainda na narrativa, bem evidente, um profundo e longo sulco de sagrado, que é o sagrado que se encontra no ser humano. Ele nota-se logo nas firmes e consistentes palavras escolhidas e na correspondente filigrana de sentidos que delas irradiam: lembremos de passagem que o ser humano, além de congenitamente ser húmus e terra, é também ser de palavras e de intemporais pensamentos. Patente ainda está o sagrado nos ternos traços com que são desenhadas muitas das personagens, sobremaneira aquelas que vão sendo as portadoras do livro, até chegar e incluir o Livro mesmo. Patente nessa ternura e naquilo que nas personagens a solicita. Claro que tal sagrado é um sagrado intra-mundano, já que o que vem da religião instituída, por intermédio do padre, o sagrado de fora do mundo, é sempre e liminarmente rechaçado.

Caro autor de Livro, caros meninos e meninas desde jovens a maduras e maduros e a todos os velhinhos que ainda têm a cabeça com luz, (já que as crianças, essas, estão muito atentas é a ver os seus bonecos, deixá-las estar, e os adolescentes elas e eles andam aos pardais, deixá-los andar também)! Como leitores, com um pé, pelo espírito que somos, nós somos circulares e eternos como Livro. Mas com o outro pé, que assenta na objectiva realidade mundana, também somos húmus, também somos esterco, também somos morte. Lembras-te, José, lembras-te daquele pesado malote que uma das personagens por ti criadas deixou abandonado na estação de Austerlitz? Mas como foste tu que inventaste essa personagem, também foste tu que, de alguma forma, o abandonaste! Em contraponto com a morte, a realíssima morte, estarmos dentro da obra literária e estarmos dentro da vida – vida mortal, já se vê -, podem mesmo quase identificar-se: “Por enquanto, aproveitemos, ainda estamos aqui”, diz-nos Livro terminando a narrativa.
Já sentiste com certeza, caro José, sentiste que, quando temos viva consciência de que somos mortais, isto é, quando notamos que a morte é nossa inseparável companheira, então, a nossa vida, vida mortal, assume uma outra densidade, tem mais sumo e brilho! E então, porque não partes daquele abandonado malote em Austerlitz para um novo e também muito belo voo literário? Transformada essa nova obra em nós, e nós transformados nessa obra nova, a nossa real vida mortal não será ela também transformada? Digo isto, autor José: Só seremos radicalmente felizes nesta nossa vida mortal se, continuadamente, fizermos contraponto da nossa vida … com a nossa morte. E o texto literário pode ajudar muito nisso. Não se trata de produzir um texto de psicologia positiva, não, mas de nos centrarmos literariamente naquilo que somos e como somos, e de literariamente se desenhar uma luz racional e emocional que oriente o ser humano, na limitada e aberta vida que o possui. Não poderemos, quanto a esta negra realidade da morte, transformá-la em realidade branca?
Que bom é estar vivo para poder usufruir do prazer da leitura e releituras deste livro Livro – com prazer começámos e com prazer terminamos -, sempre descobrindo novos e gostosos pormenores. Estar, como leitor, com um pé dentro do imaginário mundo da narrativa, e o outro pé assente na sua realidade mundana, o leitor se transformando nela, e ela nele se transformando! Um abraço muito sentido para o José.

domingo, 6 de novembro de 2011

Pistas de Leitura do Texto 40

40 – Paulo e Cristianismo ou simplesmente Jesus?
- Paulo fundador da religião cristã;
- Comparação entre a doutrina de Paulo e a pregação de Jesus;
- Fundamental, em Paulo, a ressurreição de Cristo, por ela também dar possibilidade à nossa;
- Algumas perguntas a Paulo;
- Solução natural para o conflito interior de Paulo;
- Num clima de decadência espiritual, as correntes místicas e o cristianismo;
- Há uma faculdade da vontade?
- O que é ser cristão.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

40 - Paulo e Cristianismo ou simplemente Jesus

Paulo e Cristianismo ou simplesmente Jesus?

Sem dúvida que foi Paulo de Tarso quem fundou a religião cristã (24). De acordo com ele, o cristianismo é um sistema de doutrina segundo a qual seremos salvos do pecado pela fé na graça do Cristo crucificado e ressuscitado, que também nos levará depois à ressurreição e à vida eterna. Esta doutrina não deriva directamente do Jesus histórico, ou seja, daquilo que Jesus pregou e fez durante a sua vida pública perante os doze apóstolos - doutrina que Paulo até nem conhecia pelo menos em pormenor e nunca conhecida vivencialmente -, mas assenta sobremaneira na clarividência da sua vida interior até então agitada por insolúveis aporias mas agora repentinamente consideradas solucionáveis, acontecida precisamente quando lhe relampejou na estrada de Damasco a visão do Cristo ressuscitado, cuja graça será a sua salvação e a de toda a Humanidade.
É com o pano de fundo da Lei mosaica, na Carta aos Romanos e particularmente no capítulo 7, que Paulo lança as traves mestras do seu sistema. “Eu não conheci o pecado, senão por meio da Lei”, escreve Paulo em 7.7; “Sem Lei, o pecado é coisa morta”, diz em 7.8, mas com a Lei, “o pecado ganha vida” (7.9), “porque a Lei desperta as paixões que agem nos nossos membros”(7.5). Em suma, como com a Lei há sempre pecado, “pois não é o que quero que pratico, mas o que eu odeio é que faço”(7.15), então só a graça o pode salvar daquele tormentoso conflito interior, a graça de quem lhe apareceu na estrada de Damasco, o Cristo morto mas agora segundo ele ressuscitado.

A pregação e a doutrina de Paulo são muito diversas da pregação de Jesus. Nos três pontos e na conclusão que seguem, vê-se bem essa diferença. Primeiro ponto – Enquanto Paulo diz que a vontade é impotente para cumprir a Lei, Jesus aconselha o cumprimento da Lei, mas fazendo-a sempre transbordar de amor, isto é, “cumpre a Lei e vende tudo o que tiveres e distribui-o pelos pobres” (Lc 18,22). Ou então, em vez do simplesmente legal “não faças aos outros aquilo que não queres que te façam”, o amoroso “faz aos outros aquilo que tu queres que te façam”. Segundo ponto – Para Paulo, porque somos impotentes para cumprir a Lei, só podemos ser salvos do pecado pela graça do Cristo ressuscitado; mas para Jesus, o caminho da vida é simplesmente o amor. Terceiro ponto – Segundo Paulo, a salvação definitiva está na vitória sobre a morte, ou seja, na imortalidade individual e na ressurreição. Por isso é que a modelar ressurreição de Jesus é para si fundamental. Quanto a Jesus, ele clama simplesmente que “O reino de Deus está no meio de vós” (Lc 7.21). E quando lhe perguntam o que se deve fazer para alcançar a vida eterna, ele manda simplesmente cumprir a Lei e dar tudo o que se tem aos pobres (Lc 10.25 e 18.22). A ressurreição não estará, portanto, pelo menos de forma explícita, no horizonte da pregação de Jesus (23). Assim, a conclusão é óbvia: enquanto Paulo pretendeu organizar um sistema doutrinário de salvação que servisse para resolver o seu tormentoso conflito interior, e depois também divulgá-lo para servir a muitas outras pessoas, Jesus nunca intentou, formalmente, propor qualquer sistema de doutrina salvífica. Apenas e simplesmente fazia bem às pessoas e pregava o amor.

É fundamental de facto, para Paulo, a ressurreição de Cristo, porque “se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã também a vossa fé” (Primeira Carta aos Coríntios 15,14). “E se nós temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens” (15,19). “Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morrem” (15.20)! Assim, Paulo, aquele rigorista fariseu repentinamente convertido a Cristo; de perseguidor passando repentinamente para apóstolo; voluntarista impotente para cumprir a Lei, repentinamente caído nos braços da fé na graça do Cristo ressuscitado, foi sem dúvida o grande anunciador da ressurreição do Cristo, e da nossa, depois, com a de Cristo.
Na mesma Carta aos Coríntios, elencando as várias aparições do Ressuscitado, Paulo inclui também aquela sua, aquele relâmpago na estrada de Damasco, a última de todas elas: “Em último lugar, apareceu-me também a mim, como a um aborto” (15.8). Mas, se a aparição com que foi prendado foi a última, o seu relato de todas elas foi o primeiro a aparecer publicado - entre 53 e 57 -, muito antes dos relatos dos evangelhos, que só surgiram de 70 em diante. Daí a importância e a urgência e a necessidade que Paulo concedia a esse anúncio.

Mas aquelas citações do capítulo 7 da Carta aos Romanos, acima referidas, suscitam-nos muitas perguntas, entre as quais as que seguem. Não será a razão, da qual nunca se fala, a nossa faculdade de conhecermos? Não será por ela, antes de mais, que conhecemos o que é bom e o que é mau e portanto também o que é pecado? E toda a lei não é já e sempre uma “ordenação da razão”, em ordem ao bem comum? É certo que a Lei de que aqui se fala é supostamente uma lei divina, mas, mesmo que assim seja, ela não terá de ser razoável à luz da mente humana? Pode Deus impor aos humanos preceitos irracionais ou arracionais? Em suma, não será a luz da nossa razão o nosso primeiríssimo legislador e também a nossa primeiríssima lei?
Ao dizer que só conhece o pecado por meio da Lei, Paulo anula a razão humana, pondo assim só a Lei à frente dos seus olhos, uma lei impositiva, reificada e divina, que em vão solicita o querer de uma vontade que afinal é impotente para a cumprir! Como “quer o que não faz e faz o que não quer”, Paulo sente-se perplexo, e com razão se lamenta e exclama e pergunta: “Que homem miserável sou eu! Quem me há-de libertar deste corpo que pertence à morte” (7.24)? Nesta perplexidade, ele não tem outro remédio ou salvação senão entregar-se ou cair impotente no regaço da fé, fé na graça: “Graças a Deus, por Jesus Cristo, Senhor nosso” (7.25)!
Só que aquele seu tormentoso conflito interior poderá resolver-se muito bem se o entendermos como sendo o normal conflito entre a razão e o instinto, sendo que o tal querer, isto é, a tal vontade, não será outra coisa senão o imperativo ou a determinação da razão, maior ou menor, suficiente ou ineficaz para fazer o que deve ser feito, tendo sempre presente que está dialogando com as forças do instinto. Com a razão eu vejo claramente o que devo fazer, isto é, eu quero isso mesmo, estou determinado a isso, sendo essa a força da minha vontade inteligente ou da minha inteligência determinada. Só que umas vezes consigo realizar esse intento e outras não, em virtude de eu viver num corpo de instintos que realmente “pertence à morte”, sim senhor, mas também bendito corpo porque ele é que me faculta, entre o mais, a luz da razão para me poder guiar! Para os gregos antigos, não existia a faculdade da vontade.

No florescente tempo da Antiguidade Clássica, com os luminosos gregos Sócrates e Aristóteles e a robusta República Romana, não havia consciência de termos e usarmos uma faculdade do querer ou da vontade. A razão inteligente e o vigor dos instintos iam-se entendendo sozinhos, e sentia-se prazer em viver na Terra: além da razão e do instinto, para poderem actuar concertadamente ou não, apenas eram precisos os músculos. Só no contexto de um mundo espiritualmente decadente, na vigência do Império Romano que incluía a Grécia Antiga vencida e do pulular inquieto das correntes místicas orientais que o minavam com o sentido num seguro Além onde se pudesse encontrar um refúgio perene para finalmente descansar continuando a viver, só então começou a despertar a vontade de fazer alguma coisa para aceder a esse estado de salvação. Em parêntesis se diga que tais correntes místicas, talvez mais que nunca, ainda hoje estão vivas nestes nossos tempo e mundo ultra-decadentes.
Mas foi sobretudo com o cristianismo de Paulo, a prometer a salvação nitidamente individual e a vida eterna, que a veemência do drama íntimo de um querer impotente para realizar obra que merecesse a eternidade, se começou a pôr de forma cruel, impotente vontade que depois trouxe guerras de dissidência ainda não sarada entre os cristãos. É certo que entre os clássicos gregos também houve um Platão, a gostar menos da Terra que do Céu! Mas logo o seu discípulo Aristóteles, de pés bem assentes na Terra, o esqueceu, pese embora mais tarde a Cristandade, de forma bem sintomática, o ter distinguido com a auréola de “divus”, o “divino Platão”, como gostosa e gratamente lhe tem chamado.
Na cultura do mundo ocidental, a partir dos começos do cristianismo, tem havido um grande excesso de presença da “vontade”, desde o simples querer fazer da vida individual um projecto ou uma missão a realizar ou a cumprir, até ao hediondo querer exterminador de um povo inteiro no Holocausto. O próprio Paulo, não podendo fazer obra para se salvar, a sua obra para se salvar foi cair impotente nos braços da graça do Salvador! No entanto, tal “vontade”, talvez se esfume no ar, porque, nuns casos ela não será senão o imperativo determinado da razão; noutros, ela será simplesmente a voz do sonho ou coração ou instinto; noutros ainda, ela será o caldeamento, muitas vezes indefinido, de ingredientes desses dois nossos mundos de base, em recíproca cumplicidade. Ficam-nos então só a voz da razão e a voz do corpo, a braços com o prazer e a dor, o bem e o mal. Em todos os casos, porém, a razão, neste animal racional que somos nós, é que deve comandar ou regular a vida do animal que também somos.
Na sua obra A Vida do Espírito, Volume II – Querer, Hannah Arendt, que me inspirou este texto, tem palavras certas para sintetizar a mensagem cristã, nesse contexto de aporias mentais, becos sem saída sofridos pelos povos onde se implantou e expandiu. Diz ela: “Tu que acreditaste que os homens morrem mas que o mundo durará para sempre, precisas apenas de dar meia volta, em direcção a uma fé em que o mundo chega a um fim mas tu terás a vida eterna. Então, é claro, a questão da “rectidão”, a saber, de ser digno dessa vida eterna, toma uma importância completamente nova e pessoal”.
Aporias ou becos sem saída existenciais também hoje nós os temos, nesta ultra-decadente aldeia global: os mesmos que aquando do surgir do Cristianismo, mas outros ainda mais cruéis, todos eles gerando dramas pungentes, se não irreparáveis tragédias. Quem nos salvará: a graça ou a inteligência determinada dos humanos em fazer disto uma Terra habitável, justa e pacífica, onde nos possamos deliciar com esta vida breve, neste planeta ainda azul? Ao menos, uma Terra justa e pacífica, segundo a lei, e ainda preservada e limpa como pede uma boa educação ambiental! Mesmo que nela infelizmente não haja, praticada por Jesus, a abundância do amor.