Olá, meninas e meninos!
Hoje vou falar especialmente de um amigo e falar com ele, mas talvez dessa conversa os meninos e as meninas possam aproveitar alguma coisa para a vida.
O Francisco é uma pessoa muito querida: muito sério na vida, e dotado de uma exemplar bonomia e de um delicioso humor! Ele entrega-se e integra-se totalmente na sua causa, ela e ele uma só coisa sendo, numa sintonia perfeita.
Conheci-o pela primeira vez...Não, isto assim não está certo! Não está certo porque “conhecer” é “ir nascendo e alimentando-se e crescendo com alguém ou alguma coisa”. Portanto, será preferível começar de outro modo. De modo que o encontrei pela primeira vez na universidade, por acaso até sentados à mesma mesa, onde fomos colegas dos mesmos estudos, isto é, onde um com o outro lemos os mesmos livros e ouvimos os mesmos mestres. Fomos então companheiros, felizmente durante todo o curso. Companheiros, ou seja, um e outro comendo o mesmo pão da ciência, às vezes também comendo o mesmo pão da alimentação física, e também, não poucas vezes, o mesmo pão da sabedoria! Sabedoria sobretudo recolhida de passeios um com o outro no vizinho bosque de mimosas e de choupos junto ao rio, suas águas necessariamente correndo para o mar, aquelas árvores necessariamente crescendo para a luz e estando ali e dando sombra, e nós – livres, por nossa decisão, - nós os dois falando cada um da sua vida, os dois falando das duas, já como amigos, já quase como irmãos...Só assim se pode ir conhecendo o outro. Não se pode conhecer alguém, de uma vez por todas. Conhecer é ir desaguando na amizade e no amor. Amar é a forma mais sublime de conhecer!
Transcorrido esse tempo de estudos, porém, nunca mais nos encontrámos. Também não tenho ouvido assiduamente as suas sábias e contidas palavras. Há dias, porém, a propósito da onda de descrença que está grassando na sociedade, ouvi-o dizer que muita gente “não sabe ouvir a voz do coração”(cito de memória). E portanto – sou eu a concluir – é sobremaneira essa voz que a nós, seres humanos, nos faz temer o deus tonitruante ou nos leva a chamar em nossa ajuda o deus omnipotente e bondoso mais recente.
Mas essa voz, meu caro Francisco, - e sempre sem ponta de desrespeito para consigo - essa voz é a voz antiga do corpo e do instinto e do coração, a qual não pode deixar de ser incendiada ao calor das emoções! Foi Miguel de Unamuno quem escreveu que, na evolução, o ser humano evoluiu demasiado! Porque a voz da razão, a voz nova, é bem diversa da do coração! A fé assenta e como que oficializa essa voz antiga, a voz do coração. E além disso, com todas as suas definições dogmáticas, ela impõe uma barreira intransponível, que portanto não se pode ultrapassar. Bem ao contrário, a razão, que depende da parte mais recente do cérebro, trabalha sempre em campo aberto e sem peias! Ela sonda sempre, sem cansaços nem fronteiras, o desconhecido. Por isso é que aquele querido Miguel - que atrás ficou citado e ainda está vivo como vemos – afirmou que o ser humano evoluiu demasiado! De tal sorte evoluiu que, agora, já como ser humano, é à sua razão que incumbe, entre o mais, regular as paixões que do corpo sobem à alma! Se o ser humano tivesse só a voz do coração, por causa do medo ou do favor toda a gente tinha fé mas nenhum de nós seria ser humano!
Pode dizer, caro Francisco, dizer que há muitos argumentos de razão, para além dos de coração, para provar a existência de Deus, e dizer ainda que temos atrás de nós, a apoiar-nos, toda uma Bíblia e toda uma tradição e todas essas imponentes catedrais e muito grandes e fervorosas assembleias litúrgicas e mais... Acontece é que, segundo me parece, todos os argumentos racionais para provar a existência de Deus são todos frutos tocados do bicho! E depois, será que toda a Bíblia e a tradição e o restante não poderão simplesmente explicar-se como sendo frutos da voz do coração? Se o deus não fosse temível para ser temido, nem fosse omnipotente e bondoso para nos ajudar, não seríamos indiferentes a esse deus ou deuses, mesmo em termos da voz do coração? E, sendo indiferentes, tê-los-íamos inventado, se acaso é assim?
Numa obra de Cícero, o velho Catão, símbolo das qualidades mais nobres do povo romano, já de oitenta e quatro anos, numa amena conversa com mais duas personagens, confessa que se sente feliz por estar a aproximar-se da morte. E feliz porque está convencido de que continuará a viver, indo ao encontro de amigos e familiares já falecidos. Ele está absolutamente convencido da imortalidade da alma. E até diz que, se estivesse errado nesta sua convicção, ele erraria consciente e voluntariamente, e não quereria que o arrancassem do erro!
E aquele querido Miguel, a quem já nos referimos, sentindo que o optimismo é necessário para vivermos e que a fé é um bom suporte para tal optimismo, proclama sem meias palavras: “Há que ansiar pela imortalidade, por absurda que nos pareça: mais, há que acreditar nela, de uma maneira ou de outra”. Ou seja, ele acha que, em termos racionais, a imortalidade lhe parece absurda, mas entende que deve “ansiar” por ela, isto é, desejá-la e pedi-la ardentemente com o coração! Mas o Miguel acrescenta “mais”! Diz que é mesmo preciso acreditar na imortalidade “de uma maneira ou de outra”, sendo como é evidente, uma dessas maneiras, acreditar nela mesmo sabendo, em termos de razão, que ela é absurda! Isto significará que, neste caso, é a voz da razão que cede à voz do coração! Ora, isto será humano? É claro que, ainda segundo o Miguel, há ainda a outra maneira de acreditar! Mas ele já dissera que, para ele, quando anseia (com o coração) pela imortalidade, esta já e simplesmente lhe parece (com a razão) absurda!...
Por mim, caro Francisco, por mim, simplesmente sondo, simplesmente vou fazendo perguntas. E não me importo de passar o resto da vida assim, sondando e perguntando, pois não me faltam motivos de alegria para viver.
Para o José, um muito terno abraço do João.
Hoje vou falar especialmente de um amigo e falar com ele, mas talvez dessa conversa os meninos e as meninas possam aproveitar alguma coisa para a vida.
O Francisco é uma pessoa muito querida: muito sério na vida, e dotado de uma exemplar bonomia e de um delicioso humor! Ele entrega-se e integra-se totalmente na sua causa, ela e ele uma só coisa sendo, numa sintonia perfeita.
Conheci-o pela primeira vez...Não, isto assim não está certo! Não está certo porque “conhecer” é “ir nascendo e alimentando-se e crescendo com alguém ou alguma coisa”. Portanto, será preferível começar de outro modo. De modo que o encontrei pela primeira vez na universidade, por acaso até sentados à mesma mesa, onde fomos colegas dos mesmos estudos, isto é, onde um com o outro lemos os mesmos livros e ouvimos os mesmos mestres. Fomos então companheiros, felizmente durante todo o curso. Companheiros, ou seja, um e outro comendo o mesmo pão da ciência, às vezes também comendo o mesmo pão da alimentação física, e também, não poucas vezes, o mesmo pão da sabedoria! Sabedoria sobretudo recolhida de passeios um com o outro no vizinho bosque de mimosas e de choupos junto ao rio, suas águas necessariamente correndo para o mar, aquelas árvores necessariamente crescendo para a luz e estando ali e dando sombra, e nós – livres, por nossa decisão, - nós os dois falando cada um da sua vida, os dois falando das duas, já como amigos, já quase como irmãos...Só assim se pode ir conhecendo o outro. Não se pode conhecer alguém, de uma vez por todas. Conhecer é ir desaguando na amizade e no amor. Amar é a forma mais sublime de conhecer!
Transcorrido esse tempo de estudos, porém, nunca mais nos encontrámos. Também não tenho ouvido assiduamente as suas sábias e contidas palavras. Há dias, porém, a propósito da onda de descrença que está grassando na sociedade, ouvi-o dizer que muita gente “não sabe ouvir a voz do coração”(cito de memória). E portanto – sou eu a concluir – é sobremaneira essa voz que a nós, seres humanos, nos faz temer o deus tonitruante ou nos leva a chamar em nossa ajuda o deus omnipotente e bondoso mais recente.
Mas essa voz, meu caro Francisco, - e sempre sem ponta de desrespeito para consigo - essa voz é a voz antiga do corpo e do instinto e do coração, a qual não pode deixar de ser incendiada ao calor das emoções! Foi Miguel de Unamuno quem escreveu que, na evolução, o ser humano evoluiu demasiado! Porque a voz da razão, a voz nova, é bem diversa da do coração! A fé assenta e como que oficializa essa voz antiga, a voz do coração. E além disso, com todas as suas definições dogmáticas, ela impõe uma barreira intransponível, que portanto não se pode ultrapassar. Bem ao contrário, a razão, que depende da parte mais recente do cérebro, trabalha sempre em campo aberto e sem peias! Ela sonda sempre, sem cansaços nem fronteiras, o desconhecido. Por isso é que aquele querido Miguel - que atrás ficou citado e ainda está vivo como vemos – afirmou que o ser humano evoluiu demasiado! De tal sorte evoluiu que, agora, já como ser humano, é à sua razão que incumbe, entre o mais, regular as paixões que do corpo sobem à alma! Se o ser humano tivesse só a voz do coração, por causa do medo ou do favor toda a gente tinha fé mas nenhum de nós seria ser humano!
Pode dizer, caro Francisco, dizer que há muitos argumentos de razão, para além dos de coração, para provar a existência de Deus, e dizer ainda que temos atrás de nós, a apoiar-nos, toda uma Bíblia e toda uma tradição e todas essas imponentes catedrais e muito grandes e fervorosas assembleias litúrgicas e mais... Acontece é que, segundo me parece, todos os argumentos racionais para provar a existência de Deus são todos frutos tocados do bicho! E depois, será que toda a Bíblia e a tradição e o restante não poderão simplesmente explicar-se como sendo frutos da voz do coração? Se o deus não fosse temível para ser temido, nem fosse omnipotente e bondoso para nos ajudar, não seríamos indiferentes a esse deus ou deuses, mesmo em termos da voz do coração? E, sendo indiferentes, tê-los-íamos inventado, se acaso é assim?
Numa obra de Cícero, o velho Catão, símbolo das qualidades mais nobres do povo romano, já de oitenta e quatro anos, numa amena conversa com mais duas personagens, confessa que se sente feliz por estar a aproximar-se da morte. E feliz porque está convencido de que continuará a viver, indo ao encontro de amigos e familiares já falecidos. Ele está absolutamente convencido da imortalidade da alma. E até diz que, se estivesse errado nesta sua convicção, ele erraria consciente e voluntariamente, e não quereria que o arrancassem do erro!
E aquele querido Miguel, a quem já nos referimos, sentindo que o optimismo é necessário para vivermos e que a fé é um bom suporte para tal optimismo, proclama sem meias palavras: “Há que ansiar pela imortalidade, por absurda que nos pareça: mais, há que acreditar nela, de uma maneira ou de outra”. Ou seja, ele acha que, em termos racionais, a imortalidade lhe parece absurda, mas entende que deve “ansiar” por ela, isto é, desejá-la e pedi-la ardentemente com o coração! Mas o Miguel acrescenta “mais”! Diz que é mesmo preciso acreditar na imortalidade “de uma maneira ou de outra”, sendo como é evidente, uma dessas maneiras, acreditar nela mesmo sabendo, em termos de razão, que ela é absurda! Isto significará que, neste caso, é a voz da razão que cede à voz do coração! Ora, isto será humano? É claro que, ainda segundo o Miguel, há ainda a outra maneira de acreditar! Mas ele já dissera que, para ele, quando anseia (com o coração) pela imortalidade, esta já e simplesmente lhe parece (com a razão) absurda!...
Por mim, caro Francisco, por mim, simplesmente sondo, simplesmente vou fazendo perguntas. E não me importo de passar o resto da vida assim, sondando e perguntando, pois não me faltam motivos de alegria para viver.
Para o José, um muito terno abraço do João.
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