E agora, de uma forma muito especial, eu tenho de dizer algumas (muitas) palavras sobre aquele deus imanente, de que tenho vindo a falar e ainda não disse o que ele é para mim. De uma forma muito especial, dizia, porque sempre que penso ou escrevo sobre o assunto, não posso deixar de o ensopar com uma boa dose de emoção e de ternura! Deus imanente, que afinal é o deus que percorre toda a narrativa, pois que nem as personagens nem o narrador admitem outro, como já vimos. Por isso, eu chamo a atenção de todos os meninos e meninas, a atenção do José e também da Florbela, que está ali ao pé dele, à qual ele dedica o seu livro, sempre a sua “primeira leitora” e a sua “principal crítica”.
A Natureza faz rochas sedimentares, como é o calcário; rochas vulcânicas, como é o granito; também rochas metamórficas, muito mais morosas e complicadas de fazer, como é o mármore, partindo da rocha mais mole que é o calcário. Como sabe ela fazer isto tudo? Quanto tempo demora ela a fazê-las? O ser humano saberia fazê-las, e sobretudo teria a lentíssima e persistentíssima paciência dela para as produzir, tudo isto no caso de a vida humana poder durar tanto tempo?
Corre além ao fundo, no centro de um belo vale, o rio Mondego. Muito a montante, antes de ele chegar a Coimbra, o rio vem deslizando no planalto central, pachorrento, sem nada a incomodar-lhe o andamento. E de supetão – um repente que demorou muitos milhares de anos se não milhões -, levantam-se à sua frente os maciços marginais de Coimbra. Porque aqueles montes ali, meus meninos e meninas, entre Penacova e Coimbra, são muito mais recentes do que o rio! O rio já lá corria, antes de os montes nascerem e irem crescendo. Como é que a Natureza os soube fazer nascer e crescer? E o próprio rio, quando começou a ver aqueles montes a crescerem aos seus pés e a dificultarem-lhe o curso, como é que ele congeminou solução para esta sobrevinda dificuldade? Ele viu que tinha duas soluções: ou contornar os montes que se lhe iam antepondo, ou ir roendo, muito morosa e pacientemente, água mole em pedra dura, as rochas que se lhe levantavam no caminho do seu leito. Os milhares de anos de trabalho que isso lhe durou, depois de escolher a solução que conhecemos!...E depois lá ficaram aquelas belas epigenias, vales profundos e abruptos entalados entre altaneiros montes, para regalo dos nossos olhos…
Passo muitas vezes por estes quintais aqui, e olho quase sempre para as árvores que estão. Elas estão, mas não estão paradas nem mortas. Mesmo no Inverno, não estão mortas, elas dormem. E o que é que sucede quando pressentem a Primavera? Estava ali um abrolho muito delicado numa delas, junto à estrada. Vamos a ver, pensei eu, ver se consigo um dia surpreendê-lo a abrir em delicada flor. Para isso, vou lá passar todos os dias, a fim de tentar descobrir aquela sua intimidade do seu tornar-se flor. Todos os dias lá passo de manhã ou de tarde e nunca vejo nada de diferente…mas de repente, numa fresca manhã, olho para ele…e já não é ele, é ela, é uma “flor” muito “bela” … para oferecer àquela Florbela, que está ali nesta conversa ao pé do seu José. Há, na Natureza, timidez ou vergonha ou receio de nos mostrar estes milagres seus … ou será simplesmente miopia e distracção dos nossos olhos?
Vi há dias além, a trepar um muro, um pequeno vulto escuro, com qualquer coisa na boca. Avancei então mais um tanto e parei, atento, a ver se tal se repetia. E repetiu! Uma gatinha trepou de novo o muro, com mais um gatinho nos dentes! O que terá levado a gatinha a mudar o poiso das suas crias? O que é que leva todas as fêmeas, incluída a humana, a terem um incondicional amor pelos seus filhos? Não é o deus imanente?
Saboreei, na minha boca, uma bela taça de morangos. Depois, eles lá foram descendo pelo tubo digestivo, assim sendo digeridos e depois feitos sangue e alimento para eu viver. Como é que o meu corpo sabe fazer isto tudo tão bem, sem eu ou outrem lhe ensinarmos nada? E depois, aos restos da minha alimentação, restos que não prestam para mim e por isso sabiamente o meu corpo deita fora pela saída de fundo do tubo digestivo, a isso que considero serem dejectos, a Natureza diz-me: “ouve, não deites isso fora! Eu aproveito isso! Eu sei muito bem como isso…a que chamas merda, pode ser aproveitado!
E agora, o que é que nós e a Natureza podemos fazer com esta vida mental que nos possui? Sim, porque é a Natureza que faz connosco, nós somos Natureza, é sempre a Natureza que faz! É sempre o deus imanente, que possui a Natureza e tudo o que é natural – tudo está possesso dele – é sempre esse deus que sabe, que sabe fazer e que faz.
Esta muito jovem mamã que aqui está perto de mim com o seu bebé ao colo saberá se o seu rebentinho conseguirá aprender a falar? Como aprenderá ele a ligar aos sons “m-a-m-ã” o significado que talvez já pressinta e por isso vai conhecendo? Como aprenderá a articular esses sons? Onde arrumará ele aquele significado, para nunca mais o perder? Como aprenderá ele a juntar a esse significado, sempre que o lembrar pela vida fora, emoções e sentimentos geralmente muito agradáveis? As dificuldades que o bebé terá nisto tudo não estarão a assustar a mamã? Ela saberá que o seu bebé está possuído de um deus?
Ali, na quinta, anda um jovem a podar aquelas árvores de fruto, deixando-as depois muito belas, como se fossem esculturas. Ele aprendeu a podá-las, a atrasar-lhes os ramos para elas não treparem muito nem se desequilibrarem, especialmente quando tocar o vento e elas se carregarem de frutos. O jovem aprendeu, ele agora sabe…Mas o que é tudo isto, a não ser o deus imanente que o possui?
O José, com a sua Florbela, andam em transes a congeminar novo romance nas suas mentes, como se ele fosse mais um bebé que aí nelas germinasse e fosse adquirindo formas. Quantos e que passos são precisos para que um livro seja um produto acabado? Quem escolhe o tema, quem investiga, quem junta e depois organiza os materiais, quem os vai pondo em texto, quem cuida da sua forma e do seu conteúdo, quem o dá como acabado – sim, ele agora está muito belo, é assim que vai ficar -, quem sabe fazer e faz mesmo tudo isto, a não ser o deus imanente, a musa inspiradora, o demónio sagrado que possui o José e a Florbela, sempre e em todo o caso esse deus imanente?
É preciso sabermos mais sobre o nosso deus? Esse deus não nos basta? Se não nos basta, não será por causa de tantos materiais simbólicos inúteis com que fomos entulhando e entupindo a funcionalidade da nossa vida mental? Se nos esvaziarmos deste incómodo carrego, ao menos a espaços, não se nos tornarão diferentes as realidades que chegam aos nossos sentidos? E não será também diversa a nossa vida?
Falámos há pouco da timidez ou vergonha ou receio da Natureza em nos mostrar os seus milagres e segredos. E já que entrámos na sala dos segredos da Natureza, e portanto temos de falar mais baixinho, eu vou fazer uma pergunta especialmente aos meninos, embora as meninas também possam ouvir: “Sabem o que são plantas criptogâmicas?”… Já está ali um dedo no ar, prontinho para responder: “Criptogâmico(a) é o ou a que tem os órgãos genitais escondidos. Ou então o vegetal que não produz flor, embora mesmo assim lhe apareçam sementes ou frutos”. “Muito bem, sim senhor”. É que se tudo se escancara de uma golfada ao ser humano, vai-se-lhe todo o encantamento da descoberta; o seu lento e autónomo caminhar para o desconhecido anula-se; e tudo isto é terrível para a educação sobretudo das crianças, porque elas nunca chegarão a exercitar convenientemente o músculo das suas capacidades! Se se expurgar do ser humano esse tal encantamento e esse lento caminhar para a descoberta, esse ser deixa de ser humano. Imaginem então agora se, como o José propõe, a evolução ficasse nas mãos só do ser humano, pondo tudo à mostra num santiamén como já se faz na televisão!
Mas esta longa digressão já nos vai fazendo esquecer o livro do José, que está ali com a sua Florbela, os dois muito pacientemente a gramar tudo isto. Aqui portanto terminamos este assunto, despedindo-nos da Florbela, que tem ocupações urgentes.
Do que o ser humano costuma precisar, pedido pelo instinto e pelo coração, o romance do José não lho dá. Ou dará, mas tão só de forma literariamente imaginária, vazio alimento só para a sua fantasia? Veja-se como termina o romance, com a pequenina frase “Um novo início”, tão pequena para um romance tão grande! Também não precisa do deus frio dos cientistas, talhado a bisturis de laboratórios ou congeminado pelas refinadas elucubrações dos filósofos em gabinetes sombrios, nas academias. Todos estes deuses, se o povo os vier a conhecer – e povo são também muitas vezes esses mesmos cientistas e filósofos – só lhe criarão mais fome!
O que o povo quer é um real deus-mãe onde haja um rosto inundado de doçura e um coração a desentranhar-se em amor e um colo a garantir abrigo; mas também um deus-pai real, cujos braços musculados o protejam dos perigos, e que o ilumine nas encruzilhadas da vida e lhe perdoe os desvarios e - the last but not the least – lhe garanta, no termo desta vida mortal, uma real vida eterna!!
Nunca o povo, nesta vida precária, deixará de ansiar por este deus-mãe-pai real. E quanto mais ele for espoliado pelos exploradores deste mundo, mais ele o exigirá e até o moldará com suas mãos! Será também este o caso do Deus da Bíblia?
O deus de que o povo precisa não é o deus frio e neutro das academias, mas um deus de rosto humano e familiar, caloroso e protector. Aliás, meu caro José, muitos cientistas e filósofos pregam esse deus neutro e frio nas escolas, mas trazem o familiar e caloroso para casa, vivendo e morrendo com ele! E então, neste sentido, e se for este o caso, o Deus da Bíblia ainda presta ao povo bons serviços. Por ele e com ele o povo alimenta profundas convicções, pelo menos de coração, e isso ajuda muito a viver.
Como já foi dito, o José termina o seu volumoso romance de 570 páginas com a apoteose de “ Um novo início”. Mas como, se nem os próprios cientistas que estão metidos na intriga se decidiram definitivamente entre o Big Freeze e o Big Crunch? Ou será aqui que, entre outros lugares da narrativa, o José fez funcionar a sua “proverbial teimosia”? Será que tal teimosia se dá bem com a ciência e o espírito científico, ou ela é só necessária para criar fantasia literária?
Quanto a este “um novo início”, que é o final apoteótico da obra, não terá ele sido ditado por aquela nossa profunda ânsia de imortalidade encapotada, à qual Kant e Einstein, visceralmente religiosos, disseram a razão não poder chegar, mas que lá no fundo, sob a cinza do consciente, ainda arde em grande parte da humanidade? E que leva também, caro José – temos de ser realistas -, também leva a que muitos comprem este teu belo e poderoso produto de mercado, para verem bem se ainda há alguma hipótese de serem salvos de uma definitiva morte?
E depois, a vida e a inteligência nesse novo mundo serão só e sempre artificiais? Ainda poderás falar de ser humano, se o húmus e o esterco e a morte e as emoções e a inteligência e o amor, tudo isso de que temos sido feitos, forem só artefactos de super-computadores, nada disto se levantando da nossa mãe Natureza de onde brotámos e onde vamos tendo os pés? Não deve estar a técnica ao serviço do ser humano, para o não desumanizar? O que seria este teu poderoso e muito belo romance se o expurgássemos de tudo o que o que lhe é natural: já sem um deslumbrante pôr-do-sol sobre o mar; já sem um lago de águas límpidas no Tibete; já sem as mamas de uma Ariana, para sentir e com elas encher as mãos? Veja bem, José, veja e sinta bem …estar a encher as suas mãos feitas só de carne e sangue naturais, com umas mamas puramente virtuais!
Do vazio e do silêncio surge o universo - feito de energia e matéria e vida e inteligência - e do universo se passa ao vazio e ao silêncio. Mas na Bíblia, o Deus é masculino, cria com o seu pensamento e a sua palavra, e do homem é que ele tira a mulher, tudo num tempo que é simplesmente linear, desde o alfa do início até ao omega final, a desembocar numa eternidade sem fim, com Deus. Enquanto que, noutros livros sagrados e culturas orientais, o deus é a Grande Mãe (ou simplesmente a Natureza), que cria tudo com o seu ventre redondo, sendo portanto o homem naturalmente gerado pelo redondo ventre da mulher, tudo num tempo circular, onde o princípio pode vir depois de um fim, e o fim levará sempre a um novo início, num tempo eterno sem princípio nem fim. Contradição entre estas duas tradições culturais, ou simplesmente complementaridade? A tradição bíblica é macho, e fêmea são as outras?
Mas temos de terminar, amigo José. Já vamos almoçar muito tarde. Tu vais almoçar uns bons nacos de cabrito com batatas e verdura – mas tudo artificial, nota bem! – naquele já afamado restaurante cibernético, ali ao dobrar da esquina. Eu irei simplesmente a uma tasca lá perto, onde servem uns deliciosos produtos biológicos. Desejo-te bom apetite, José! Bom apetite e bom proveito. Até breve, José! Muito breve mesmo porque talvez ainda nos encontremos … na tasca, eu a acabar de almoçar…e tu a iniciar! Um novo mas agradável início, e por certo também um muito bom final!
Um grande abraço para ti, com os meus sinceros parabéns, e também uma calorosa saudação para a Florbela.
A Natureza faz rochas sedimentares, como é o calcário; rochas vulcânicas, como é o granito; também rochas metamórficas, muito mais morosas e complicadas de fazer, como é o mármore, partindo da rocha mais mole que é o calcário. Como sabe ela fazer isto tudo? Quanto tempo demora ela a fazê-las? O ser humano saberia fazê-las, e sobretudo teria a lentíssima e persistentíssima paciência dela para as produzir, tudo isto no caso de a vida humana poder durar tanto tempo?
Corre além ao fundo, no centro de um belo vale, o rio Mondego. Muito a montante, antes de ele chegar a Coimbra, o rio vem deslizando no planalto central, pachorrento, sem nada a incomodar-lhe o andamento. E de supetão – um repente que demorou muitos milhares de anos se não milhões -, levantam-se à sua frente os maciços marginais de Coimbra. Porque aqueles montes ali, meus meninos e meninas, entre Penacova e Coimbra, são muito mais recentes do que o rio! O rio já lá corria, antes de os montes nascerem e irem crescendo. Como é que a Natureza os soube fazer nascer e crescer? E o próprio rio, quando começou a ver aqueles montes a crescerem aos seus pés e a dificultarem-lhe o curso, como é que ele congeminou solução para esta sobrevinda dificuldade? Ele viu que tinha duas soluções: ou contornar os montes que se lhe iam antepondo, ou ir roendo, muito morosa e pacientemente, água mole em pedra dura, as rochas que se lhe levantavam no caminho do seu leito. Os milhares de anos de trabalho que isso lhe durou, depois de escolher a solução que conhecemos!...E depois lá ficaram aquelas belas epigenias, vales profundos e abruptos entalados entre altaneiros montes, para regalo dos nossos olhos…
Passo muitas vezes por estes quintais aqui, e olho quase sempre para as árvores que estão. Elas estão, mas não estão paradas nem mortas. Mesmo no Inverno, não estão mortas, elas dormem. E o que é que sucede quando pressentem a Primavera? Estava ali um abrolho muito delicado numa delas, junto à estrada. Vamos a ver, pensei eu, ver se consigo um dia surpreendê-lo a abrir em delicada flor. Para isso, vou lá passar todos os dias, a fim de tentar descobrir aquela sua intimidade do seu tornar-se flor. Todos os dias lá passo de manhã ou de tarde e nunca vejo nada de diferente…mas de repente, numa fresca manhã, olho para ele…e já não é ele, é ela, é uma “flor” muito “bela” … para oferecer àquela Florbela, que está ali nesta conversa ao pé do seu José. Há, na Natureza, timidez ou vergonha ou receio de nos mostrar estes milagres seus … ou será simplesmente miopia e distracção dos nossos olhos?
Vi há dias além, a trepar um muro, um pequeno vulto escuro, com qualquer coisa na boca. Avancei então mais um tanto e parei, atento, a ver se tal se repetia. E repetiu! Uma gatinha trepou de novo o muro, com mais um gatinho nos dentes! O que terá levado a gatinha a mudar o poiso das suas crias? O que é que leva todas as fêmeas, incluída a humana, a terem um incondicional amor pelos seus filhos? Não é o deus imanente?
Saboreei, na minha boca, uma bela taça de morangos. Depois, eles lá foram descendo pelo tubo digestivo, assim sendo digeridos e depois feitos sangue e alimento para eu viver. Como é que o meu corpo sabe fazer isto tudo tão bem, sem eu ou outrem lhe ensinarmos nada? E depois, aos restos da minha alimentação, restos que não prestam para mim e por isso sabiamente o meu corpo deita fora pela saída de fundo do tubo digestivo, a isso que considero serem dejectos, a Natureza diz-me: “ouve, não deites isso fora! Eu aproveito isso! Eu sei muito bem como isso…a que chamas merda, pode ser aproveitado!
E agora, o que é que nós e a Natureza podemos fazer com esta vida mental que nos possui? Sim, porque é a Natureza que faz connosco, nós somos Natureza, é sempre a Natureza que faz! É sempre o deus imanente, que possui a Natureza e tudo o que é natural – tudo está possesso dele – é sempre esse deus que sabe, que sabe fazer e que faz.
Esta muito jovem mamã que aqui está perto de mim com o seu bebé ao colo saberá se o seu rebentinho conseguirá aprender a falar? Como aprenderá ele a ligar aos sons “m-a-m-ã” o significado que talvez já pressinta e por isso vai conhecendo? Como aprenderá a articular esses sons? Onde arrumará ele aquele significado, para nunca mais o perder? Como aprenderá ele a juntar a esse significado, sempre que o lembrar pela vida fora, emoções e sentimentos geralmente muito agradáveis? As dificuldades que o bebé terá nisto tudo não estarão a assustar a mamã? Ela saberá que o seu bebé está possuído de um deus?
Ali, na quinta, anda um jovem a podar aquelas árvores de fruto, deixando-as depois muito belas, como se fossem esculturas. Ele aprendeu a podá-las, a atrasar-lhes os ramos para elas não treparem muito nem se desequilibrarem, especialmente quando tocar o vento e elas se carregarem de frutos. O jovem aprendeu, ele agora sabe…Mas o que é tudo isto, a não ser o deus imanente que o possui?
O José, com a sua Florbela, andam em transes a congeminar novo romance nas suas mentes, como se ele fosse mais um bebé que aí nelas germinasse e fosse adquirindo formas. Quantos e que passos são precisos para que um livro seja um produto acabado? Quem escolhe o tema, quem investiga, quem junta e depois organiza os materiais, quem os vai pondo em texto, quem cuida da sua forma e do seu conteúdo, quem o dá como acabado – sim, ele agora está muito belo, é assim que vai ficar -, quem sabe fazer e faz mesmo tudo isto, a não ser o deus imanente, a musa inspiradora, o demónio sagrado que possui o José e a Florbela, sempre e em todo o caso esse deus imanente?
É preciso sabermos mais sobre o nosso deus? Esse deus não nos basta? Se não nos basta, não será por causa de tantos materiais simbólicos inúteis com que fomos entulhando e entupindo a funcionalidade da nossa vida mental? Se nos esvaziarmos deste incómodo carrego, ao menos a espaços, não se nos tornarão diferentes as realidades que chegam aos nossos sentidos? E não será também diversa a nossa vida?
Falámos há pouco da timidez ou vergonha ou receio da Natureza em nos mostrar os seus milagres e segredos. E já que entrámos na sala dos segredos da Natureza, e portanto temos de falar mais baixinho, eu vou fazer uma pergunta especialmente aos meninos, embora as meninas também possam ouvir: “Sabem o que são plantas criptogâmicas?”… Já está ali um dedo no ar, prontinho para responder: “Criptogâmico(a) é o ou a que tem os órgãos genitais escondidos. Ou então o vegetal que não produz flor, embora mesmo assim lhe apareçam sementes ou frutos”. “Muito bem, sim senhor”. É que se tudo se escancara de uma golfada ao ser humano, vai-se-lhe todo o encantamento da descoberta; o seu lento e autónomo caminhar para o desconhecido anula-se; e tudo isto é terrível para a educação sobretudo das crianças, porque elas nunca chegarão a exercitar convenientemente o músculo das suas capacidades! Se se expurgar do ser humano esse tal encantamento e esse lento caminhar para a descoberta, esse ser deixa de ser humano. Imaginem então agora se, como o José propõe, a evolução ficasse nas mãos só do ser humano, pondo tudo à mostra num santiamén como já se faz na televisão!
Mas esta longa digressão já nos vai fazendo esquecer o livro do José, que está ali com a sua Florbela, os dois muito pacientemente a gramar tudo isto. Aqui portanto terminamos este assunto, despedindo-nos da Florbela, que tem ocupações urgentes.
Do que o ser humano costuma precisar, pedido pelo instinto e pelo coração, o romance do José não lho dá. Ou dará, mas tão só de forma literariamente imaginária, vazio alimento só para a sua fantasia? Veja-se como termina o romance, com a pequenina frase “Um novo início”, tão pequena para um romance tão grande! Também não precisa do deus frio dos cientistas, talhado a bisturis de laboratórios ou congeminado pelas refinadas elucubrações dos filósofos em gabinetes sombrios, nas academias. Todos estes deuses, se o povo os vier a conhecer – e povo são também muitas vezes esses mesmos cientistas e filósofos – só lhe criarão mais fome!
O que o povo quer é um real deus-mãe onde haja um rosto inundado de doçura e um coração a desentranhar-se em amor e um colo a garantir abrigo; mas também um deus-pai real, cujos braços musculados o protejam dos perigos, e que o ilumine nas encruzilhadas da vida e lhe perdoe os desvarios e - the last but not the least – lhe garanta, no termo desta vida mortal, uma real vida eterna!!
Nunca o povo, nesta vida precária, deixará de ansiar por este deus-mãe-pai real. E quanto mais ele for espoliado pelos exploradores deste mundo, mais ele o exigirá e até o moldará com suas mãos! Será também este o caso do Deus da Bíblia?
O deus de que o povo precisa não é o deus frio e neutro das academias, mas um deus de rosto humano e familiar, caloroso e protector. Aliás, meu caro José, muitos cientistas e filósofos pregam esse deus neutro e frio nas escolas, mas trazem o familiar e caloroso para casa, vivendo e morrendo com ele! E então, neste sentido, e se for este o caso, o Deus da Bíblia ainda presta ao povo bons serviços. Por ele e com ele o povo alimenta profundas convicções, pelo menos de coração, e isso ajuda muito a viver.
Como já foi dito, o José termina o seu volumoso romance de 570 páginas com a apoteose de “ Um novo início”. Mas como, se nem os próprios cientistas que estão metidos na intriga se decidiram definitivamente entre o Big Freeze e o Big Crunch? Ou será aqui que, entre outros lugares da narrativa, o José fez funcionar a sua “proverbial teimosia”? Será que tal teimosia se dá bem com a ciência e o espírito científico, ou ela é só necessária para criar fantasia literária?
Quanto a este “um novo início”, que é o final apoteótico da obra, não terá ele sido ditado por aquela nossa profunda ânsia de imortalidade encapotada, à qual Kant e Einstein, visceralmente religiosos, disseram a razão não poder chegar, mas que lá no fundo, sob a cinza do consciente, ainda arde em grande parte da humanidade? E que leva também, caro José – temos de ser realistas -, também leva a que muitos comprem este teu belo e poderoso produto de mercado, para verem bem se ainda há alguma hipótese de serem salvos de uma definitiva morte?
E depois, a vida e a inteligência nesse novo mundo serão só e sempre artificiais? Ainda poderás falar de ser humano, se o húmus e o esterco e a morte e as emoções e a inteligência e o amor, tudo isso de que temos sido feitos, forem só artefactos de super-computadores, nada disto se levantando da nossa mãe Natureza de onde brotámos e onde vamos tendo os pés? Não deve estar a técnica ao serviço do ser humano, para o não desumanizar? O que seria este teu poderoso e muito belo romance se o expurgássemos de tudo o que o que lhe é natural: já sem um deslumbrante pôr-do-sol sobre o mar; já sem um lago de águas límpidas no Tibete; já sem as mamas de uma Ariana, para sentir e com elas encher as mãos? Veja bem, José, veja e sinta bem …estar a encher as suas mãos feitas só de carne e sangue naturais, com umas mamas puramente virtuais!
Do vazio e do silêncio surge o universo - feito de energia e matéria e vida e inteligência - e do universo se passa ao vazio e ao silêncio. Mas na Bíblia, o Deus é masculino, cria com o seu pensamento e a sua palavra, e do homem é que ele tira a mulher, tudo num tempo que é simplesmente linear, desde o alfa do início até ao omega final, a desembocar numa eternidade sem fim, com Deus. Enquanto que, noutros livros sagrados e culturas orientais, o deus é a Grande Mãe (ou simplesmente a Natureza), que cria tudo com o seu ventre redondo, sendo portanto o homem naturalmente gerado pelo redondo ventre da mulher, tudo num tempo circular, onde o princípio pode vir depois de um fim, e o fim levará sempre a um novo início, num tempo eterno sem princípio nem fim. Contradição entre estas duas tradições culturais, ou simplesmente complementaridade? A tradição bíblica é macho, e fêmea são as outras?
Mas temos de terminar, amigo José. Já vamos almoçar muito tarde. Tu vais almoçar uns bons nacos de cabrito com batatas e verdura – mas tudo artificial, nota bem! – naquele já afamado restaurante cibernético, ali ao dobrar da esquina. Eu irei simplesmente a uma tasca lá perto, onde servem uns deliciosos produtos biológicos. Desejo-te bom apetite, José! Bom apetite e bom proveito. Até breve, José! Muito breve mesmo porque talvez ainda nos encontremos … na tasca, eu a acabar de almoçar…e tu a iniciar! Um novo mas agradável início, e por certo também um muito bom final!
Um grande abraço para ti, com os meus sinceros parabéns, e também uma calorosa saudação para a Florbela.
Sem comentários:
Enviar um comentário