quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Texto 7

“Olá, cambada!”
Quando ando por aqui por estas ruas – tenho de ver se vou desencravando as pernas, para elas me irem dando o andar por mais uns tempos – tenho encontrado muitas pessoas, ora com elas cruzando pelos caminhos, ora deparando com elas em seus quintais ou até em exíguas frestas de portas ou janelas entreabertas. E logo depois de trocarmos saudações, como sou desconhecido por aqui, a sua pergunta sacramental – sacramento é este, o das palavras pelos humanos inventadas para entre si comunicarem – a pergunta sacramental é esta: “ Mas quem é você?”
Ora aqui está uma pergunta que me deixa sempre embatucado! Tenho ou tinha esta profissão assim e assim? Nasci ou moro em tal terra, que fica um pouco acima ou um pouco abaixo de outra de todos bem conhecida? A minha casa é mesmo em frente da de fulano, que toda a gente conhece? O meu nome de pia, ou seja, de baptismo, identifica-se comigo ou ele é mera palavra que o vento leva, como se fora pena de ave ou fumo? Estas palavras por mim acabadas de lavrar – eu (subentendido), me, minha, meu, comigo, mim – referem-se a quê?, foram escritas por quem? E ainda uma outra pergunta, para a qual tentaremos resposta noutra ocasião: uma cabrinha ou um cãozito fariam estas perguntas?
E o princípio de resposta que lhes dou, invariavelmente, é um sorriso ou até uma gargalhada! Faço depois um silêncio breve, enquanto do outro lado se levanta a surpresa e cresce a expectativa. E então, digo sorridente: “Olhe, não sei bem!”, e vou-me rindo. É claro que o riso ou o sorriso, de companhia com a amabilidade, não vão deixar descambar a conversa para a desconfiança ou até para pior!
Tenho pensado em respostas mesmo, todas feitas de palavras, singelamente sábias e contidas e exactas. Mas não é fácil encontrá-las, e muito mais difícil ainda é fazer nascer os pensamentos que estarão por trás de tais palavras. Que sou eu? Quem sou eu? Eu e tu e ele não serão só abstracções? Mas abstracções de quê? De que realidade? Aqui é que bate o ponto!
Serei eu o meu eu mental, feito de pensamentos e emoções e todas as experiências por mim já passadas e presentes, tudo isso tendo acontecido ou agora acontecendo no meu corpo, tudo presentificado pela unificadora memória? Realmente, pensando bem, parece que sou isso mesmo! Mas, se eu, pela minha consciência, me estou a ver sendo isso, então eu não sou isso mas sou quem está a ver isso! Ou serei eu as duas coisas, isto é, quem está a ver e também isso mesmo? De nada, não pode haver consciência. A consciência é sempre consciência de algo. Por outro lado, no meu eu mental, está sempre implicada essa consciência porque, quando penso alguma coisa, também me estou a ver a pensar. Posso então dizer que “sou consciência e eu mental” ou “eu mental consciente”. Mas é facto que, quando digo que “sou consciência do vazio e do silêncio”, como os orientais sabiamente costumam dizer, eu secundarizo e até posso temporariamente desligar-me dos meus pensamentos e das minhas vivências passadas e mesmo da minha habitual maneira de pensar! Claro que, neste caso, ainda me posso perguntar sobre se, nesses espaços em que me desligo do meu eu mental, eu resulto empobrecido! É preciso porém acrescentar que, quer de uma maneira quer da outra, nós estamos sempre agarrados ao corpo. Não somos o corpo, mas não podemos existir sem corpo. Porque estamos num corpo, nós somos como papagaios de papel: andamos lá em cima no ar, mas sempre agarrados à terra! Estamos num corpo, mas cuidado com isto! O eu mental consciente não está, como hóspede, no corpo! O tal Abelardo, isto não deixaria passar! Ao contrário, o eu mental consciente é como uma luz ou flor, preciosa flor ou luz, sempre brotando do corpo!
E agora, digam-me lá, meninos e meninas: então, se eu sou, de forma habitual, “consciência e eu mental”, mas também posso ser, no iluminado agora, “consciência do vazio e do silêncio” aguardando por novíssimas sensações nessa consciência virginal e limpa, então o que é que eu vou responder a quem me pergunta “mas afinal quem é você”? Não será continuar a sorrir e até a gargalhar, em palavras acrescentando que não sei bem quem sou?
Isto é tudo muito giro, não é? Mas as meninas e os meninos é que hão-de dizer se estes arrazoados estão certos!

2 comentários:

  1. cambada não!
    partilho convosco este poema de Ferreira
    Goulart

    Metade

    Que a força do medo que eu tenho,
    não me impeça de ver o que anseio.

    Que a morte de tudo o que acredito
    não me tape os ouvidos e a boca.

    Porque metade de mim é o que eu grito,
    mas a outra metade é silêncio...

    Que a música que eu ouço ao longe,
    seja linda, ainda que triste...

    Que a mulher que eu amo
    seja para sempre amada
    mesmo que distante.

    Porque metade de mim é partida,
    mas a outra metade é saudade.

    Que as palavras que eu falo
    não sejam ouvidas como prece
    e nem repetidas com fervor,
    apenas respeitadas,
    como a única coisa que resta
    a um homem inundado de sentimentos.

    Porque metade de mim é o que ouço,
    mas a outra metade é o que calo.

    Que essa minha vontade de ir embora
    se transforme na calma e na paz
    que eu mereço.

    E que essa tensão
    que me corrói por dentro
    seja um dia recompensada.

    Porque metade de mim é o que eu penso,
    mas a outra metade é um vulcão.

    Que o medo da solidão se afaste
    e que o convívio comigo mesmo
    se torne ao menos suportável.

    Que o espelho reflita em meu rosto,
    um doce sorriso,
    que me lembro ter dado na infância.

    Porque metade de mim
    é a lembrança do que fui,
    a outra metade eu não sei.

    Que não seja preciso
    mais do que uma simples alegria
    para me fazer aquietar o espírito.

    E que o teu silêncio
    me fale cada vez mais.

    Porque metade de mim
    é abrigo, mas a outra metade é cansaço.

    Que a arte nos aponte uma resposta,
    mesmo que ela não saiba.

    E que ninguém a tente complicar
    porque é preciso simplicidade
    para fazê-la florescer.

    Porque metade de mim é platéia
    e a outra metade é canção.

    E que a minha loucura seja perdoada.

    Porque metade de mim é amor,
    e a outra metade...
    também

    Ferreira Gullar

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  2. Caro amigo Sem Nome! Aquilo da “cambada” é só em sentido figurado, e isso está explicado no primeiro texto! Era a maneira como um nosso humorista se dirigia ao auditório. Mas talvez o melhor seja evitarmos de ora em diante esse apelativo, até porque nós o que pretendemos é dirigirmo-nos com ternura a toda a gente. Quanto ao poema que nos oferece, talvez seja preferível não fazermos comentários, mas deixarmos que ele ressoe em cada um(a) de forma diversa, cada um(a) à sua maneira.

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