quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Texto 6

Olá, meninas e meninos!
Vou aqui revelar uma minha intimidade às meninas e aos meninos...Parece que sei mais ou menos como eu próprio funciono por dentro, e é esse o segredo, segredo de topo, que aqui vou desvendar!
Com a minha razão, eu vejo. Com a minha razão, isto é, com a luz ou a consciência, que a parte mais recente do meu cérebro me concede. E vejo o quê? Vejo como o meu corpo e a parte mais antiga do cérebro me produzem os instintos, as emoções e os desejos e esta insaciável fome de viver, querendo sempre mais! Então, eu mesmo, com a minha razão, tenho de moderar-compaginar-articular esses apetites, até para que, de tais felicidades – as humanas felicidades têm de ser sempre pequenas – eu possa gozar por mais tempo! Em vez de me meter à bruta nos copos, até em breve adoecer e morrer, poderei gozar as delícias de ir degustando uns copitos com os meus amigos e por muito tempo, caramba! Pode até acontecer que essa antiga voz do corpo, que é também a voz do coração, me peça coisas que são logicamente impossíveis. E então, aí, a voz da razão não tem mais nada a dizer à outra a não ser “pois é, também eu queria, mas isso é totalmente impossível, por nossa própria natureza”!
Tal diálogo entre estas nossas duas vozes – difícil diálogo mas também muito gostoso – pode estender-se a muita coisa! Em primeiro lugar, o corpo pode lembrar a alma, isto é, a razão consciente e pensante e com memória, lembrar-lhe coisas que ela própria esqueceu! Então isso é assim? Claro que é, porque a memória da razão nos falha muitas vezes, e o próprio corpo também tem “memória”, a qual pode vir em ajuda daquela! Este menino aqui, já de certa idade, lembra-se sempre e de repente daqueles mágicos quatro numerozinhos com que o seu cartão de débito costuma abrir a caixa-multibanco para lá ir buscar o pilim? Não lembra, pois não? Mas olhe que isso não é motivo para ficar aí já de cabeça perdida, sem saber o que fazer! Vá, mesmo assim, até à caixa-multibanco, com muita calma coloque o seu cartão na ranhura, respire fundo e tranquilo, e logo verá, com jubilosa surpresa, que os seus dedos também têm “memória”! Eles digitam-lhe, sem hesitações, os números certinhos! De onde se conclui que também o corpo pode lembrar a alma. Mas como pode isso acontecer?
É assim. A alma ou razão, nas primeiras vezes que dirigiu e procedeu a tal operação, foi entregando os números ao corpo e foi-o ensinando a operar com eles, criando-lhe mesmo o hábito de, cada vez mais maquinalmente, poder trabalhar com eles. Então, agora, basta estar calmo e no local do crime, isto é, no contexto de realizar a operação, e tudo ficará resolvido! Pena, muita pena, é que o pilim é que está faltando. Mas tem é de se ir lá, de quando em vez, mesmo levantando muito pouco baguinho, para que o corpo não perca o hábito e portanto não se vá esquecer!
Já começámos então a ver como é a segunda hipótese de diálogo, isto é, como a razão pode ensinar o corpo. Portanto, em segundo lugar, é a alma que ensina o corpo a criar nele automatismos, como já acima anunciámos. Aquela senhora ali, cuja graça é, precisamente, de Graça ser nomeada, anda a tirar a carta de condução, e o que é mais difícil para ela é mesmo só a parte prática. Então, estando de corpo e mente muito repousados, ela precisará – talvez o melhor seja ela estar sozinha para melhor se concentrar – precisará de se sentar ao volante do seu carro parado e, de uma forma muito nítida e por várias vezes repetida, dar ordens precisas aos seus pés e mãos a fim de executarem os movimentos certos para as operações a realizar, segundo o que ela aprendera teoricamente com a razão. Ela precisará que o seu corpo automatize os movimentos para conduzir, assim tentando criar o hábito da condução. E depois, uma vez alcançado o hábito, até poderá conduzir de forma maquinal, assim podendo conversar e rir com o seu marido, que vai ao lado dela!
Em terceiro lugar, é a própria mente ou razão que se poderá ensinar a si mesma, o que trará muito boas consequências para si própria e para todo o corpo. Por um movimento reflexo da minha consciência, eu posso ver todo o pensamento involuntário e compulsivo, e todo o desarranjo que ele está causando a todo o meu cérebro e a todo o meu corpo, que se sente incomodado por negativas emoções, tudo me indispondo à brava e não me deixando dormir. Então, a própria razão inventará estratégias para se libertar a si própria desse pesadelo. Uma respiração abdominal e profunda, sempre acompanhada pelo próprio pensamento, que assim não anda a vadiar por longes, é uma muito simples e eficaz estratégia para acabar com tal pesadelo.
Finalmente, neste agradável comércio entre corpo e alma, não olvidemos as muitas e habituais situações em que o corpo, por meio do seu mal-estar e da dor, avisa a alma do perigo em que os dois estão caindo. É, por exemplo, o caso em que o corpo avisa a alma de exagerados esforços físicos ou mentais, que redundam em perigos para a saúde dos dois. É também o caso em que o corpo se queixa à alma, das más disposições e doenças provocados pelos excessos em que os dois têm andado, em virtude do que metem na boca ou até em outro sítio...É certo que, neste caso, foi o corpo que pedira a satisfação dos apetites, o prazer, mas nós bem sabemos como, nestes assuntos, o corpo sozinho não tem modos nem medidas, quer é sempre mais! De maneira que, se não for a alma a regular-lhe os apetites, lá vai tudo por água abaixo! Na verdade, só a alma conhece, ou pode vir a conhecer, aquele belo aforismo latino que se podia ler no frontispício de muitas e belas fontes antigas: “Dant pocula nymphae. Immoderata nocent”, ou seja, “As ninfas oferecem copos de água, mas, em demasia, fazem mal”! Que, além de água, copos são esses, cada um de nós é que sabe!
Os meninos e as meninas que adormeceram durante a leitura deste longo texto – e já há minutos alguns deles ressonam – não sabem o gozo que perderam, os malandros! Sirva então esta mui pesada perda, ao menos, para que nos próximos capítulos estejam mais espertinhos, está bem?

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