quinta-feira, 28 de agosto de 2014

232 - O Tempero da Ternura

Há coisas que me fascinam: uma é olhar o mar,
outra é olhar uma árvore, se possível
 com suas flores ou frutos.
Digo olhar, querendo significar contemplar,
se não mesmo ficar fascinado.
Qual dos dois é maior: o grande oceano, ou eu?
É este mar oceano, aqui à minha frente,
ora golfando raivoso como leão enfurecido,
ora mansinho como cordeiro acabadinho de nascer
e a ser lambido pela mãe ou pela areia,
ou é esta luzinha que eu sou, consciência de mim,
desta minha insignificância, mas também consciência
da vida, dos oceanos e do universo?

Se há mares ou oceanos diferentes,
também há árvores de muitas espécies, todas elas belas,
quase sempre na sua incontaminada beleza natural:
há a cameleira, com as suas flores multicolores
no denso fundo verde das folhas;
há os dióspiros, esses frutos feitos de fogo, divinos,
pendentes da mãe árvore toda despida de folhas;
há o indomável cedro, com a sua nunca saciada
sede de subir às alturas, pedida, ela,
pelas raízes que o aprofundam na terra

Mas hoje, com este céu e este mar de todo limpos,
não nos detenhamos aqui por mais tempo no promontório,
não só porque o vento se levantou e agora corre frio,
como também porque sentimos alguma urgência
em fazer caminho para o vale dos cedros,
onde hoje há, brincando, um grupinho de crianças

E agora, já no vale dos cedros,
neste santuário morno, sem vento
(só passando ele, de manso, pelos píncaros)
e onde, depois do convívio com elas e com  os mestres,
o álacre gorjeio das crianças se extingue com a distância,
eu, sentado solidamente no chão, costas direitas
dadas ao dorso do generoso cedro,
(que partilha comigo a profunda seiva da terra
e permuta o halo aéreo da respiração)
inspiro profundamente com ele. E tão
profunda e altamente inspiro
que logo ali  o inspirar vira longo bocejo,
ali mesmo sob o lago dos olhos,
depois expirando lenta e longamente
descendo ao profundo da terra,
eu e ele, o cedro, daí colhendo seiva,
ela se entranhando nele, e por ele em mim,
e assim por diante, sem tempo, em movimento
bipolar, que é o movimento da vida …

Entre a terra e o céu, cedro e eu, nós estamos,
(nítido espelho azul-oceano em que nos vemos),
pois é deles que nos alimentamos:

Almo aéreo ar da árvore,
seiva funda, verde e azul, da terra,
meu alimento morno, vem,
fica comigo



Dedico este texto a meu pai, cujo aniversário hoje ocorreria.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

231 - Respondendo com Perguntas

1 - Olá, amigas e amigos! Há perguntas para as quais a melhor resposta é uma outra pergunta. Ao mestre Krishnamurti, alguém fez um dia esta pergunta: Mestre, o senhor acredita em Deus? Ao que logo o mestre respondeu com uma outra pergunta: Mas porque é que faz essa pergunta?

2 - Se perguntarmos por Deus, levados pelo desejo de que Ele exista, pelo medo que temos de Ele não existir e pela ansiedade que nos possa causar todo esse estado mental, esse deus que iremos encontrar não sai dessa nossa íntima sala mental de perguntas porque não é real. Isso é um mito que fabricamos para nosso conforto e segurança. E se para esse fabrico agenciarmos a autoridade de um mestre, a segurança e o conforto serão potenciados.


3 - Ao contrário, porém, se nos despirmos e libertarmos desses medos e desejos e ansiedades, não fazendo assim barragem ou resistência ao curso natural da vida, então, a própria vida, no silêncio, nos ensinará. Ah, mas falta dizer que o tal mestre não disse que Deus não existia!

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

230 - Pó de Estrelas

Somos feitos de fiozinhos quânticos,
pó antigo vindo de estrelas
que dança a sua dança contínua …

Nenhuma compacta solidez imaginada
resiste à subtil dança da energia,
dança prenhe da imprevista vida

Ralo cai do céu o relento do crepúsculo
nestas  partículas antigas e por elas em ondas,
viajantes sempre mas jamais perdidas
nutrindo a vida que floresce em espírito

Pela energia formamos o nosso eu
o sábio faz a sua descoberta
por ela nos conhecemos e curamos
o monge se concentra em seu agora
a mamã dá à luz o seu bebé

…………………………………………………………

O céu chorou um orvalho manso; e depois,
levantando o derradeiro véu de nuvens,
a pastorinha do céu, silenciosa e branca,
subiu lentamente e ocupou toda a colina
com miríades de cordeirinhos a pastar:

Na minha taça, toda ela se espelha,

ou sou eu que me perco em seu luar?

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

229 - O Agora ou Contemplação

1 – Olá, amigas e amigos! Nós ainda não sabemos viver porque, habitualmente, não vivemos o agora. Não vivemos o agora, nem sequer costumamos estar no presente, porque o que fazemos no presente é quase sempre lembrar o passado e antever o futuro.
O agora não é o presente, o qual faz parte da cadeia do tempo, entalado entre o passado e o futuro. Não é porque, no agora, não há mudanças (psicológicas), e a medida das mudanças é que constitui o tempo. No agora, é como se não houvesse tempo. Podemos ver, fora de nós, o curso das mudanças nas coisas, mas dentro, numa tranquilidade doce da nossa intimidade, não sentimos a passagem do tempo.
Viver o agora é, antes de mais, ser consciência do que estamos fazendo; depois – e mais profundamente – é sentirmos que estamos respirando, assim recebendo esse alento da vida; é também sabermos que estamos ligados a toda a vida da Terra e ao próprio planeta que nos acolhe como nossa morada; e ainda sabermos que, simultaneamente, nos abrimos à transcendência porque, por exemplo, quando bebemos um simples copo de água, estamos a haurir elementos com que sempre se fazem também as estrelas e as galáxias.
O presente nunca é o agora; no presente, nunca fugimos à voragem do tempo (ver texto 8, por exemplo).

2 – De algum modo, viver o agora é viver em contemplação. Contemplação que, como diz Mattoso, “requer a concentração, o despojamento e a solidão, (e) exige de quem a busca o descentramento de si mesmo” (Levantar o CéuOs Labirintos da Sabedoria, p. 255).
Na vida contemplativa, sobretudo dos monges mais antigos, há contemplação mas também acção, ou seja, um lado mais teorético e outro mais activo: com o primeiro, muda-se o olhar que temos sobre o mundo e também sobre nós mesmos, como parte do mundo; com o segundo, procura mudar-se o mundo e nós mesmos, sempre segundo o nosso novo olhar. Dessa vida contemplativa, eles são os seus dois constituintes, que entre si se complementam: a acção tanto pode preparar como derivar da contemplação, a qual, assim, acontece depois ou antes daquela.
A contemplação é simultaneamente acto de conhecimento e de amor; ela é inteligência que gera sabedoria. Sabedoria que, portanto, é conhecimento gostoso e bom, mas também amor clarividente. Com a contemplação, que é inteligência e sabedoria, descentra-se o nosso eu, como afirma Mattoso, ou, se quisermos, vai-se anulando, a espaços, o nosso eu mental, que nos delimita e isola dos outros, assim (nos) abrindo à consciência da Totalidade Universal, na qual desaguamos.
De algum modo, pois, o agora é sempre contemplação: ele é compreensão global contemplativa, feita de conhecimento e de amor.

3 – Mas há uma importante diferença entre o agora e essa contemplação, pelo menos como Mattoso a concebe. É que o agora basta-se a si mesmo, não espera nada de melhor, enquanto que a contemplação religiosa está possuída de esperança. E quando se espera algo e, neste caso, algo melhor, não só não se está completamente no agora, como também este agora se deprecia em comparação com o que virá. No caso da contemplação religiosa, aguarda-se instantemente a Parusia, ou seja, o fim do mundo, para então se desvendar a nossa última realidade, que é a de Deus ser tudo em cada um de nós.
E então … porque é que este bichinho humano tão pequeno há-de dar tanta importância a si próprio, neste Universo sem fim?


sexta-feira, 1 de agosto de 2014

228 - Vida com Asas

Certo é que a vida nos nasce
no centro do nosso corpo

Mas certo é também que a mente
é quem cuida dessa vida
lhe dá duas asas leves
fá-la voar e florescer
em saber e em beleza