terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

130 - Fiel, o meu Cão


1 – Olá! Se há uma palavra bela e geralmente adequada para nomearmos um cão, essa é a palavra Fiel. A esta palavra, na nossa língua, várias outras se associam por procederem todas do mesmo étimo:
Antes de mais, a palavra ; depois, fiel ou fiéis, fielmente e fidelidade, com as respectivas palavras de sentido contrário, infiel ou infiéis, infielmente e infidelidade; também as palavras perfídia e pérfido, que se relacionam com alguém que engana outro, utilizando a falsa fé; ainda confiar, confiança, confidência e confidente, sendo este a pessoa “que faz ou recebe uma confidência”, esta sendo um “segredo confiado” ou a “comunicação de algo pessoal”.
Mas nas duas línguas antigas que deram origem à nossa, o étimo que nos ofereceu todas estas palavras também queria dizer, no plural, as cordas de uma lira.
Todas estas palavras – por nossa desgraça, também as de sentido contrário ou negativo quando a nós relacionadas – podem aplicar-se com propriedade a pares recíprocos de seres, a vários níveis: a benfazeja brisa e a ervinha do campo, comunicando e confiando segredos entre si, benignamente; o mesmo, entre o dono e o seu cão; muito especialmente entre dois seres humanos, prometendo fidelidade um ao outro; e Deus falando com os seus fiéis, estes acreditando e vivendo a sua fé. Mas tal , se o étimo for assumido no plural, como já vimos, muito se assemelha à das cordas de uma lira, devendo todas elas estar afinadas e soarem harmoniosas em seu conjunto. E só o ser humano é que, com o seu semelhante, pode usar da perfídia e ser pérfido, em completa desarmonia.

2 – Chegou-me há dias uma história muito gira. Havia uma velhinha que vivia sozinha e, para não viver sozinha, arranjou um cão, o Fiel, um pastor alemão. Por sinal, uma velhinha que era muito devota, nunca faltando aos actos de culto na igreja. De modo que, já com a sua companhia em casa, quando o sino então tocasse a chamá-la para o culto, o que é que ela havia de fazer ao cão? Ora, o próprio cão lhe resolveu o problema! O sino tocou, tocou, a velhinha pôs o lenço e o xaile, sempre com o cão a seu lado, muito atento e interrogante… e ao lado dela foi também assistir ao culto! E como, durante a função, o Fiel se portasse tão bem como os outros fiéis, a velhinha preparou-lhe uma almofada, larga e vermelha, para vezes futuras.
Depois, facilmente o Fiel se habituou não só ao chamamento do sino, como também a ser ele mesmo a avisar a sua dona, já meio surdita, ganindo à volta dela. E assim ficavam os dois lado a lado a assistir à função, sem perturbar ninguém, ela sentada na ponta extrema de um banco, ele enroscado na sua almofada vermelha, pousada na fria pedra da nave.
Sucedeu porém que este amoroso idílio de recíproca fidelidade teve de cessar, porque a velhinha morreu. E então, ganindo de dor por vários dias e noites, o Fiel procurou por toda a parte a sua dona perdida e não a encontrou. Não encontrou, mas, ao tocar do sino, lá continuava ele a ir assistir às funções litúrgicas, sempre deitado na almofada que a sua dona lhe preparara. E como nunca perturbava ninguém, que poderosa razão haveria para ele ser daí expulso?
Enroscado na sua almofada, pousada sobre a branca pedra da nave e junto ao sítio onde a sua dona se sentava, o Fiel continuou a assistir aos ofícios. Às vezes, levantava a cabecita e olhava para o lado a fim de ver se a sua dona já lá estava outra vez, ou olhava para a frente, para o altar, talvez atendendo às vozes que vinham de lá ou, pelo contrário, levemente perturbado com os silêncios que entre as vozes sentia. Mas depois, baixava de novo a cabeça, meditando dormente.
De enroscado assim no convés da nave, onde estava, para onde o terá levado também, daí a uns tempos, o navio da vida? Terá encontrado, de novo, a sua dona?

3 – O ser humano cria uma rede de afectos para ancorar a sua existência e não se sentir só na vida. Afectos para com simples animais e afectos para com seus semelhantes. Ainda bem que o ser humano é social. Mas também é certo que ele é um ser, não de solidão mas sim de solitude, um ser que só cresce e se salva no seu “estar só” (ver texto 100).
Há assim, em cada um, um reduto de intimidade, a um tempo inacessível aos outros mas também podendo estar aberto a todos e a tudo. Ele “está só” mas não está em solidão. “Feliz o homem que é nada”, para só ser relação de harmoniosa fidelidade e amor para com todo o universo.
A esta luz, até a morte lhe será uma realidade branca e não trágica, por nela se quebrar o último entrave para entrar definitivamente na harmonia da grande lira do universo. O último e mais nobre nível de se ser fiel e harmonioso, com todos e com tudo.

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