terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

134 - Sombras e Luz


Em alto gabinete sombrio
junto ao parque o mestre
 teia indecifrável tece
 sobre o “Ser e o Tempo”,
cedo encetada nunca concluída

Do outro lado da cidade o caudilho
numa praça com seus acaudilhados
berra pela limpeza de sangue
extermínio de raças impuras

O homem é um “ser-para-a-morte”
ou será um “ser-para-viver”,
ainda que só viver
uma vida mortal?

Não é o Ser só um conceito
aplicado a cada ser,
no humano também a consciência de si
e das demais realidades do mundo?

É o homem um ser que está no tempo,
que se prolonga no tempo,
que se salva pela liberdade
que só o tempo lhe dá,
ou o Tempo é só a medida
do movimento das coisas e da vida:
bebé antes, agora moça altiva
depois cãs e rugas outrora não havidas?

Na noite, Ana aluna no parque, a luminosa
olhando a alta janela do mestre
luz apagada luz acesa
segundo combinado segredo
enfim, a ansiada e acesa luz
luz de um temporário amor

Diga lá outra vez, Ana:
em vez de tantas falácias metafísicas
ouropéis com que revestimos o mundo,
quanto melhor é o sabor das realidades nuas,
e nós também nus, perante elas!

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

133 - A Devida e Correcta Perspectiva


1 – Olá! Pela sua esforçada tentativa de encontrar um fundamento seguro para toda a sua construção mental, Descartes (1596-1650) é considerado o pai da filosofia moderna.
No fundo, no fundo mesmo de todo o seu edifício mental, Descartes pôs a dúvida, a dúvida sobre tudo, mesmo de si próprio. De facto - digamos entre parênteses - a dúvida deve ser sempre o nosso básico alimento mental. E então, duvidando sobre tudo, ele se encontrou a pensar; e pensando, constatou que existia … como ser pensante. E aqui está a primeira e inconcussa pedra do seu edifício mental.
Por isto, segundo ele, o ser humano não é corpo. O ser humano é um eu pensante que está num corpo. O corpo não é um seu constituinte; ele é só sua morada.

2 - Vivo então num corpo, como um hóspede ou peregrino vive na sua hospedaria. Mas … quem me diz que o meu corpo não é um fantasma – pensava ainda, duvidando, Descartes –, um fantasma sem qualquer consistência real? Onde é que eu poderei encontrar fundamento para poder aceitar que esse corpo é uma realidade, realidade fora de mim mas comigo? Tal fundamento só pode ser Deus, continuava a pensar, o qual é causa de si próprio, ou seja, do seu ser que já inclui a sua existência, e também causa de todo o mundo objectivo e contingente, começando pelo meu corpo.
Estamos assim a ver quanto este primeiro e esclarecido homem moderno, particularmente quanto ao nosso corpo, está longe da nossa cultura reinante, que o hiper-valoriza e sujeita a todas as vagas da moda e o quer obsessiva e eternamente jovem.
        
3 - Mas então, não será mais simples e verdadeiro dizer que este subjectivo eu, de que tenho experiência e que sou, é a luz espiritual que se acende da lâmpada material do meu corpo, ou a fina e etérea flor que desabrocha do frágil caule do meu corpo que nasce e se alimenta da terra?
         E quanto àquela juventude eterna, bem sabemos o que Tabucchi escreve no seu conto intitulado “Ao seguir a sombra, o tempo envelhece depressa”. Nós somos sombra que envelhece, somos morte, somos noite eterna. Noite que, mesmo que te refugies “num pequeno abrigo de luz, tornar-te-ás sua presa porque à tua volta, como um mar que cercasse o teu farol, está essa intransponível presença” (citado por Pedro Mexia, Expresso, 25-8-12).
         Assim, qual abrigo de luz ou farol, o eu consciente sabe que o tempo da sua vida é efémero, tem limites; muito embora não seja o espírito, essa luz ou flor, que directamente se deixa corroer pelas vicissitudes do tempo, mas sim o corpo, donde brota essa flor ou luz.
 Não obstante, haverá necessidade de sermos assim tão dramáticos? Ou será que somos assim, só porque este é o meu caso e o de cada um de nós? Mas não é esta a lei para todos os outros seres do mundo? Quem sou eu, neste universo imenso, para ser um caso tão especial (ver texto 89. 5)?
         Ainda assim, a nossa vida pode ser uma aventura muito feliz, contanto que percamos a excessividade egoica que o nosso ambiente cultural nos impinge, e nos mantenhamos na devida e correcta perspectiva.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

132 - Poema do Pó e da Luz


Húmus ou barro somos
mas também asa
ou flor
ou luz

Corpo de pó ou húmus
humano corpo
mas também cristal de luz
fulgindo na escuridão
viçosa flor a abrir
do chão nascendo
golpe de asa leve
tocando as estrelas
 inquieto papagaio no ar ao vento
preso à mão de uma criança

Sempre tudo ligado ao corpo à terra
tudo se alimentando das realidades do mundo

domingo, 10 de fevereiro de 2013

131 - Existência


Existir, ou “ex-sistere”
é colocar-se fora
do determinismo natural,
quanto possível,
pela nossa liberdade

E depois,
para além do que é possível,
que nos custe tanto,
existindo,
deixar de existir;
como nos custou,
 não existindo,
ainda não existir

No intervalo de dois nadas
o milagre da vida
objectividades e subjectividades
a fosforescência do amor

Tudo compõe o universo

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

130 - Fiel, o meu Cão


1 – Olá! Se há uma palavra bela e geralmente adequada para nomearmos um cão, essa é a palavra Fiel. A esta palavra, na nossa língua, várias outras se associam por procederem todas do mesmo étimo:
Antes de mais, a palavra ; depois, fiel ou fiéis, fielmente e fidelidade, com as respectivas palavras de sentido contrário, infiel ou infiéis, infielmente e infidelidade; também as palavras perfídia e pérfido, que se relacionam com alguém que engana outro, utilizando a falsa fé; ainda confiar, confiança, confidência e confidente, sendo este a pessoa “que faz ou recebe uma confidência”, esta sendo um “segredo confiado” ou a “comunicação de algo pessoal”.
Mas nas duas línguas antigas que deram origem à nossa, o étimo que nos ofereceu todas estas palavras também queria dizer, no plural, as cordas de uma lira.
Todas estas palavras – por nossa desgraça, também as de sentido contrário ou negativo quando a nós relacionadas – podem aplicar-se com propriedade a pares recíprocos de seres, a vários níveis: a benfazeja brisa e a ervinha do campo, comunicando e confiando segredos entre si, benignamente; o mesmo, entre o dono e o seu cão; muito especialmente entre dois seres humanos, prometendo fidelidade um ao outro; e Deus falando com os seus fiéis, estes acreditando e vivendo a sua fé. Mas tal , se o étimo for assumido no plural, como já vimos, muito se assemelha à das cordas de uma lira, devendo todas elas estar afinadas e soarem harmoniosas em seu conjunto. E só o ser humano é que, com o seu semelhante, pode usar da perfídia e ser pérfido, em completa desarmonia.

2 – Chegou-me há dias uma história muito gira. Havia uma velhinha que vivia sozinha e, para não viver sozinha, arranjou um cão, o Fiel, um pastor alemão. Por sinal, uma velhinha que era muito devota, nunca faltando aos actos de culto na igreja. De modo que, já com a sua companhia em casa, quando o sino então tocasse a chamá-la para o culto, o que é que ela havia de fazer ao cão? Ora, o próprio cão lhe resolveu o problema! O sino tocou, tocou, a velhinha pôs o lenço e o xaile, sempre com o cão a seu lado, muito atento e interrogante… e ao lado dela foi também assistir ao culto! E como, durante a função, o Fiel se portasse tão bem como os outros fiéis, a velhinha preparou-lhe uma almofada, larga e vermelha, para vezes futuras.
Depois, facilmente o Fiel se habituou não só ao chamamento do sino, como também a ser ele mesmo a avisar a sua dona, já meio surdita, ganindo à volta dela. E assim ficavam os dois lado a lado a assistir à função, sem perturbar ninguém, ela sentada na ponta extrema de um banco, ele enroscado na sua almofada vermelha, pousada na fria pedra da nave.
Sucedeu porém que este amoroso idílio de recíproca fidelidade teve de cessar, porque a velhinha morreu. E então, ganindo de dor por vários dias e noites, o Fiel procurou por toda a parte a sua dona perdida e não a encontrou. Não encontrou, mas, ao tocar do sino, lá continuava ele a ir assistir às funções litúrgicas, sempre deitado na almofada que a sua dona lhe preparara. E como nunca perturbava ninguém, que poderosa razão haveria para ele ser daí expulso?
Enroscado na sua almofada, pousada sobre a branca pedra da nave e junto ao sítio onde a sua dona se sentava, o Fiel continuou a assistir aos ofícios. Às vezes, levantava a cabecita e olhava para o lado a fim de ver se a sua dona já lá estava outra vez, ou olhava para a frente, para o altar, talvez atendendo às vozes que vinham de lá ou, pelo contrário, levemente perturbado com os silêncios que entre as vozes sentia. Mas depois, baixava de novo a cabeça, meditando dormente.
De enroscado assim no convés da nave, onde estava, para onde o terá levado também, daí a uns tempos, o navio da vida? Terá encontrado, de novo, a sua dona?

3 – O ser humano cria uma rede de afectos para ancorar a sua existência e não se sentir só na vida. Afectos para com simples animais e afectos para com seus semelhantes. Ainda bem que o ser humano é social. Mas também é certo que ele é um ser, não de solidão mas sim de solitude, um ser que só cresce e se salva no seu “estar só” (ver texto 100).
Há assim, em cada um, um reduto de intimidade, a um tempo inacessível aos outros mas também podendo estar aberto a todos e a tudo. Ele “está só” mas não está em solidão. “Feliz o homem que é nada”, para só ser relação de harmoniosa fidelidade e amor para com todo o universo.
A esta luz, até a morte lhe será uma realidade branca e não trágica, por nela se quebrar o último entrave para entrar definitivamente na harmonia da grande lira do universo. O último e mais nobre nível de se ser fiel e harmonioso, com todos e com tudo.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

129 - O Ouro das Palavras


Não te deixes contaminar
pela diarreia das palavras,
dita esta, verborreia,
bem pior que a do corpo

Precisas e contidas são ouro,
um nada alargadas ou imprecisas
são prata ou bronze
e é tudo quanto precisas

Sê breve:
dirás tudo … e agradarás