quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

127 - Há Mortos no Bosque



1 - Olá, amigas e amigos! Entremos aqui por baixo por esta orla do bosque, à descoberta de estragos neste mundo vegetal, provocados pela recente intempérie que durou três dias, os dias 18,19 e 20 do mês corrente. A vereda que se abre à nossa frente guia-nos os passos no primeiro trecho da distância, subindo lentamente, e depois, porque o declive se acentua bastante, outras duas se abrirão até ao topo norte do bosque, uma mais a direito e própria só de alpinistas, a outra mais suave, vencendo a aspereza do caminho por um rodeio largo pela direita.
Ah, mas temos de lembrar-nos, ainda que de relance, daquilo que se passou nesses três dias escuros em que o sol mal saiu para o seu giro diurno, mas os ventos e as chuvas, ao contrário, se soltaram às escâncaras dos seus esconderijos para invadirem e tomarem conta da terra e dos céus.

2 - Nos três dias em referência, pois, um enorme temporal de vento e chuva, quase contínuo, embateu e golpeou tudo o que encontrou à sua frente: telhados e outras coberturas nas casas, árvores, muros, tudo o mais que se mantinha de pé e lhe estava a jeito.
No primeiro dia, ainda houve energia eléctrica, muito embora a nossa recente tdt, nos seus agora cinco canais, estivesse impossível, pior que nunca, já que nunca esteve bem. Mas nos dois dias seguintes, a energia faltou, e, com essa falha, veio a quase paralisação da vida dentro das nossas habitações.
E assim se vê como séculos de civilização e de optimismo humanos andam presos só por um fio que, a um anormal mas brandíssimo abano dos elementos da natureza, à escala universal, pode deslaçar ou partir.
E então, sem quase poder sair de casa, por via do vento e da chuva e da humidade que dá cabo dos ossos, que podia fazer-se lá dentro?

3 - A luz baça que entra pela pequena janela, para a sala, mal vai dando para ler as gordas do jornal de sábado e rabiscar depois algumas letras. Assim, um banqueiro diz: “Os banqueiros saíram mal desta crise financeira, de uma forma geral. Pagaram os justos pelos pecadores”. Por seu lado, uma jornalista escreve: ”Ao manter a ficção do “ajustamento”, a burocracia europeia está a tratar da autopreservação e a proteger o dinheiro emprestado”. Agora, a opinião do editorialista: “A um mês de a reforma (do Estado) ficar fechada, ninguém conhece as ideias concretas do governo e da oposição. E é assim que vamos reformar o Estado. À pressa, sob pressão e sem uma conversa séria”. Finalmente – a luz vai fenecendo a olhos vistos -, o anúncio de uma empresa a publicitar “85 canais, 100 megas de internet” etc etc etc, quando cada um de nós, para ver, só tem dois olhos e também lentes, quando precisas, para ajudar esses dois. Bem melhor seria, pelo menos para nós consumidores, que a empresa diligenciasse por pôr, como deve ser, a tv generalista.

4 - Há, em primeiro lugar, junto aos nossos pés que caminham no bosque pelo primeiro trecho de vereda, as ervas rasteiras e os pequenos arbustos, o trevo e o rosmaninho, a urze, o cardo de ouro hispânico, o musgo quase por toda a parte, mas à esquerda, em pequena encosta, vê-se um recente renque de eucaliptos tão viçosos que Deus os abençoa.
Mas quando se chega à bifurcação da vereda e o terreno acentua a subida, aí logo, deparamos com o início de um muito triste espectáculo. Por efeito do vento norte batendo nos troncos e sobretudo nas ramagens, e também da chuva que foi amolecendo a terra onde mergulhavam as raízes, alguns pinheiros antigos, pinheiros enormes, caíram e jazem mortos. E se continuarmos a caminhar e a subir pela vereda da direita, até ao topo norte do bosque, o espectáculo é cada vez mais triste e deprimente. Muitos pinheiros antigos caíram e jazem mortos no bosque.

5 - Cai lá fora uma chuva miudinha enrolada em novelos de bruma e sente-se o seu sussurro nas caleiras dos beirais. Quanto ao vento, que andou à solta e em folia duas noites e dois dias inteirinhos quase sem parar, agora dorme e nem ressona.
Caída a noite, também um luar brando e líquido, vindo da pastora errante que começa a remontar o céu, vai pingando em silêncio … no ar, nas cabeleiras das árvores, humedecendo brancamente os seus troncos, fazendo luzir o molhado e macio musgo do chão.
Quão luminoso está o bosque, luminoso e vivo … muito embora com alguns mortos dentro de si, caídos pelo chão!
Para já, os mortos são só pinheiros do bosque. Quem dera que amanhã os mortos não sejam países – os mais pequenos e periféricos – da comunidade europeia.
Portugal firmou a sua identidade de país independente só quando, num dia de manhã, resolveu o grande susto de não se poder alargar mais na Europa, decidindo logo aí, de pinho, de pinheiros antigos como estes, construir as suas naus para descobrir mais mundo. A globalização começou aí e esteve algum tempo só por sua conta.
Nós só fomos grandes quando andámos embarcados, quando alimentámos a vida da pátria com sangue vindo de longes. Pois, como pode um país pequenino e periférico, longe do coração do corpo europeu, dotar-se de uma boa circulação de sangue?
Mas num outro dia de manhã, porque não arredámos pé do mesmo solo antigo de proa da Europa – tirando uma que outra dentadita do vizinho do lado - haveremos de acordar convencidos de que somos placa giratória para todos os continentes, somos nau de muitos lemes a apontar para toda a terra e céus.

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