domingo, 27 de janeiro de 2013

128 - Sobre Mozart, e não só


1 - Olá! Lembram-se daquele Requiem famoso, daquele(a) Lacrimosa Dies illa, tão imponente quanto aterrorizador? Desse dia final que, por ser tão determinado e preciso e terrível, era um dia de género feminino e não masculino? Mas não, não é só sobre isto que vamos falar. Aliás, o jovem Mozart nunca foi um terrorista: a arte musical, de beleza inexcedível, é toda sua, mas o terrorismo verbal é de outros!
Já aqui noutros textos dissemos que somos muito mais emoções do que pensamento. Mozart, menino-prodígio e génio musical, é prova disso mesmo.
Aos seis anos de idade, a criancinha Wolfgang Amadeus Mozart esteve no regaço da maternal Imperatriz Maria Teresa, mãe de dezasseis filhos e mãe do Império, e os dois se beijaram com ternura. Até ao fim da sua vida, com 35 anos, “Mozart buscou incessantemente o afecto e o reconhecimento dos outros, não conseguindo porém evitar que o desdém acabasse por prevalecer”.

2 - No decurso da evolução na vida animal, o aparecimento da impassível e fria luz da razão, constituinte ao que se sabe exclusiva dos humanos, dá-se só na sua ponta final. O que fica para trás são emoções e não pensamento. Aliás, o nosso pensar vagabundo mas também mesmo o nosso pensamento dirigido não serão sempre ou quase sempre pensamento motivado em emoções ou também motivador de emoções? O que é por exemplo a criatividade do espírito, a não ser especialmente ele andar a agenciar bem-estar emocional para o corpo, para o corpo enquanto tal e para o corpo enquanto fonte do próprio espírito, o qual encontra no corpo garantia de subsistência?
Até enquanto alimentamos o espírito, nós estamos também a cuidar das nossas emoções, não é? Com efeito, por mais especulativa que seja a actividade que o esteja a mover, ele está sempre a influenciar as emoções e a trabalhar para elas. Haverá sempre o prazer das descobertas que vai operando, ou a dificuldade e a dor por não encontrar o desejado. Isto, sem falarmos de determinados prazeres espirituais, como o da arte, que fazem as delícias do coração, e portanto das emoções.

3 - Agora, na vida de Mozart, há o caso do terror (por si?) infligido à irmã e à mãe, por elas pensarem ele ter cometido um sacrilégio, ao raptar e assim profanar, a poder de copianço por memória, um exclusivo musical para serviço religioso só na capela do papa, em Roma.
O caso pode contar-se como segue. Quando tinha 14 anos, Mozart e o pai, numa das muitas viagens artísticas que os dois fizeram pela Europa, estiveram em Roma onde, na capela do papa, assistiram a um ofício litúrgico da Semana Santa, em que se tocou e cantou um Miserere a nove vozes, peça escrita havia mais de cem anos mas ainda peça exclusiva da Capela Sistina, isto é, uma obra que só podia ser desempenhada nesse local. Vai daí que o rapazinho, génio para a música como talvez mais ninguém, ouviu com atenção toda a obra e, no mesmo dia mas já na hospedaria, escreveu de memória todo esse número musical. Havia é certo, na sua escrita, pequenas incorrecções em relação com o original ouvido, mas logo no dia seguinte as corrigiu, depois de ouvir de novo com o pai a mesma peça, no mesmíssimo local.
Admirados e contentes com o sucedido, o pai Leopoldo (Mozart) e o filho Wolfgang escreveram à família a relatar tal proeza. Mas a mãe e a irmã, em reposta, tiveram uma reacção bem diversa, pois “estavam preocupadas com a possibilidade de Wolfgang ter cometido um sacrilégio e incorrido na pena de excomunhão”.
Pode dizer-se agora que, hoje em dia, nós vemos esse assunto a outra luz, relativizando esse havido terror ou, pelo menos, essa grande preocupação da mãe e da irmã. Com efeito, hoje, não só não haveria tal exclusivo – porque se houvesse, ninguém lhe ligaria –, como também ninguém se importaria com tal pecado e tal pena. Mas o facto é que, nesse tempo, esse caso aterrorizou por haver a hipótese de sacrilégio e posterior cominação da pena de excomunhão!
Vamos agora ao Requiem, essa peça de inolvidável beleza. Como é possível a arte mais sublime, como é a de Mozart no seu Requiem, servir uma letra que em vários passos não é menos que terrorista, não só pelas suas inverdades como também pela exploração que faz das emoções dos crentes? Será porque as palavras e as frases, quando as cantamos ou tocamos, perdem a veemência do seu sentido? E tudo isso no século do Iluminismo e já depois da Revolução Francesa! Bem andou a instituição religiosa em ter recentemente retirado do circuito litúrgico tão nefastos textos.

4 - Segundo pensa Hannah Arendt, a cadeia das falácias metafísicas desmoronou-se, e agora só há que aproveitar algumas jóias que ficaram entre os escombros. Tal cadeia tem assentado na Religião, na Autoridade e na Tradição. De facto, não se podia tocar na Religião nem na Autoridade nem na Tradição.
Há com certeza Autoridade e Tradição, fora da Religião. Mas nesta, de uma forma muito especial, encontram-se as outras duas. Sobretudo na confissão religiosa que, para além de não aceitar o livre exame das Escrituras, considera a Tradição como fonte de fé.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

127 - Há Mortos no Bosque



1 - Olá, amigas e amigos! Entremos aqui por baixo por esta orla do bosque, à descoberta de estragos neste mundo vegetal, provocados pela recente intempérie que durou três dias, os dias 18,19 e 20 do mês corrente. A vereda que se abre à nossa frente guia-nos os passos no primeiro trecho da distância, subindo lentamente, e depois, porque o declive se acentua bastante, outras duas se abrirão até ao topo norte do bosque, uma mais a direito e própria só de alpinistas, a outra mais suave, vencendo a aspereza do caminho por um rodeio largo pela direita.
Ah, mas temos de lembrar-nos, ainda que de relance, daquilo que se passou nesses três dias escuros em que o sol mal saiu para o seu giro diurno, mas os ventos e as chuvas, ao contrário, se soltaram às escâncaras dos seus esconderijos para invadirem e tomarem conta da terra e dos céus.

2 - Nos três dias em referência, pois, um enorme temporal de vento e chuva, quase contínuo, embateu e golpeou tudo o que encontrou à sua frente: telhados e outras coberturas nas casas, árvores, muros, tudo o mais que se mantinha de pé e lhe estava a jeito.
No primeiro dia, ainda houve energia eléctrica, muito embora a nossa recente tdt, nos seus agora cinco canais, estivesse impossível, pior que nunca, já que nunca esteve bem. Mas nos dois dias seguintes, a energia faltou, e, com essa falha, veio a quase paralisação da vida dentro das nossas habitações.
E assim se vê como séculos de civilização e de optimismo humanos andam presos só por um fio que, a um anormal mas brandíssimo abano dos elementos da natureza, à escala universal, pode deslaçar ou partir.
E então, sem quase poder sair de casa, por via do vento e da chuva e da humidade que dá cabo dos ossos, que podia fazer-se lá dentro?

3 - A luz baça que entra pela pequena janela, para a sala, mal vai dando para ler as gordas do jornal de sábado e rabiscar depois algumas letras. Assim, um banqueiro diz: “Os banqueiros saíram mal desta crise financeira, de uma forma geral. Pagaram os justos pelos pecadores”. Por seu lado, uma jornalista escreve: ”Ao manter a ficção do “ajustamento”, a burocracia europeia está a tratar da autopreservação e a proteger o dinheiro emprestado”. Agora, a opinião do editorialista: “A um mês de a reforma (do Estado) ficar fechada, ninguém conhece as ideias concretas do governo e da oposição. E é assim que vamos reformar o Estado. À pressa, sob pressão e sem uma conversa séria”. Finalmente – a luz vai fenecendo a olhos vistos -, o anúncio de uma empresa a publicitar “85 canais, 100 megas de internet” etc etc etc, quando cada um de nós, para ver, só tem dois olhos e também lentes, quando precisas, para ajudar esses dois. Bem melhor seria, pelo menos para nós consumidores, que a empresa diligenciasse por pôr, como deve ser, a tv generalista.

4 - Há, em primeiro lugar, junto aos nossos pés que caminham no bosque pelo primeiro trecho de vereda, as ervas rasteiras e os pequenos arbustos, o trevo e o rosmaninho, a urze, o cardo de ouro hispânico, o musgo quase por toda a parte, mas à esquerda, em pequena encosta, vê-se um recente renque de eucaliptos tão viçosos que Deus os abençoa.
Mas quando se chega à bifurcação da vereda e o terreno acentua a subida, aí logo, deparamos com o início de um muito triste espectáculo. Por efeito do vento norte batendo nos troncos e sobretudo nas ramagens, e também da chuva que foi amolecendo a terra onde mergulhavam as raízes, alguns pinheiros antigos, pinheiros enormes, caíram e jazem mortos. E se continuarmos a caminhar e a subir pela vereda da direita, até ao topo norte do bosque, o espectáculo é cada vez mais triste e deprimente. Muitos pinheiros antigos caíram e jazem mortos no bosque.

5 - Cai lá fora uma chuva miudinha enrolada em novelos de bruma e sente-se o seu sussurro nas caleiras dos beirais. Quanto ao vento, que andou à solta e em folia duas noites e dois dias inteirinhos quase sem parar, agora dorme e nem ressona.
Caída a noite, também um luar brando e líquido, vindo da pastora errante que começa a remontar o céu, vai pingando em silêncio … no ar, nas cabeleiras das árvores, humedecendo brancamente os seus troncos, fazendo luzir o molhado e macio musgo do chão.
Quão luminoso está o bosque, luminoso e vivo … muito embora com alguns mortos dentro de si, caídos pelo chão!
Para já, os mortos são só pinheiros do bosque. Quem dera que amanhã os mortos não sejam países – os mais pequenos e periféricos – da comunidade europeia.
Portugal firmou a sua identidade de país independente só quando, num dia de manhã, resolveu o grande susto de não se poder alargar mais na Europa, decidindo logo aí, de pinho, de pinheiros antigos como estes, construir as suas naus para descobrir mais mundo. A globalização começou aí e esteve algum tempo só por sua conta.
Nós só fomos grandes quando andámos embarcados, quando alimentámos a vida da pátria com sangue vindo de longes. Pois, como pode um país pequenino e periférico, longe do coração do corpo europeu, dotar-se de uma boa circulação de sangue?
Mas num outro dia de manhã, porque não arredámos pé do mesmo solo antigo de proa da Europa – tirando uma que outra dentadita do vizinho do lado - haveremos de acordar convencidos de que somos placa giratória para todos os continentes, somos nau de muitos lemes a apontar para toda a terra e céus.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

126 - Coisas, não Palavras


o ideal da paz
o ideal da justiça
o ideal do amor
tudo ideias belas
tudo ideias boas
que as palavras dizem
palavras só palavras só

Falta só o necessário
e urgente
pessoas e instituições a praticar a paz
a justiça e o amor
realidades e não ideias nem palavras
fumos estes que se esquecem
ou a leve aragem leva

domingo, 13 de janeiro de 2013

125 - Broinhas de Natal



1 - Olá, amigas e amigos! Notei ontem à noite que ainda tinha, na geleira, umas broinhas de Natal. Nesse luminoso tempo as comprei, as paguei com Iva e tudo como manda o fisco, e as guardei, a estas remanescentes, para serem comidas mais tarde. Aqui estão elas, as broinhas, depois de as ter tirado ontem do frio, agora prontinhas para consumir. O bafo morno da manhã fez-lhes subir a temperatura e tê-las-há posto tão fofinhas como quando saíram do forno. Comam! Sirvam-se todos, por favor! Partidas em pequeninos, se preciso for, elas dão para muita gente e até para Vítor & Passos, se quiserem! Sirvam-se à vontade! Tanto mais que é uma oferta cá da casa! Pois então, eu não posso aqui inaugurar um novo modelo de economia? A “economia do dom”? Ei-las então, as broinhas, para vossa delícia:

2.1 - Primeira broinha: “Aquilo (a falência do Lehman Brothers e a consequente queda do capitalismo financeiro com o crash de Wall Street, em 15-9-2008) era um terramoto que iria destruir o mundo tal qual o conhecemos. Aquilo era o anúncio do colapso dos sistemas políticos democráticos ocidentais, manifestamente incapazes de perceber e de controlar os agentes financeiros, pondo-os ao serviço das economias” (Clara Ferreira Alves, Expresso de 3-11-12).

2.2 - Segunda broinha: “ O que marcará definitivamente esta década (2003-12) será a implosão de um sistema económico capturado pelo capital financeiro e especulativo (…) e a autofagia do sistema financeiro internacional (…) O capitalismo do século XXI devorou-se (…) levando consigo a economia, as empresas indefesas, o dinheiro dos cidadãos e milhões de postos de trabalho no mundo inteiro” (Miguel Sousa Tavares, Expresso de 3-11-12).

2.3 - Terceira broinha: “Não foram os reformados que elaboraram as leis de acesso às pensões, ou estabeleceram as fórmulas de cálculo para a definição do seu montante. Nem foram eles que impuseram as condições do contrato a que o Estado os obrigou, sem lhes oferecer alternativa (…) Alterar esse contrato através de leis com efeitos retroativos (…) é violar os mais elementares princípios da boa-fé e da confiança (…) Entrámos na fase do terrorismo social.” Fernando Madrinha, Expresso, 22-12-12.

2.4 - Quarta broinha: “Em 2006, no âmbito da operação “Furacão”, Ricardo Salgado dizia: “… (os bancos e) as pessoas têm de aprender que têm de pagar impostos, porque, se fogem aos impostos estão a prejudicar a sociedade como um todo”. Mas, em 2012, e a respeito do mesmo banqueiro, noticia-se que “Ricardo Salgado foi prestar declarações, no processo “Monte Branco”, para esclarecer milhões de euros que colocou no estrangeiro até 2010 e que não declarara ao fisco” (Nicolau Santos, Expresso de 5-1-13).

2.5 - Quinta broinha: “O sistema financeiro funciona como um casino sem regras (…) Os que criaram a crise são os encarregados de a corrigir. É o mesmo que mandar a raposa guardar o galinheiro. Vamos incubar a próxima crise” Filipe Gonzalez, Expresso, 5 - 1 - 13).

2.6 - Sexta broinha: A propósito de um banqueiro ter dito que, em relação ao Banif, o governo tinha andado bem, o comentador disse: “Eles (os banqueiros) deviam era ter vergonha de saírem à rua” (Miguel Sousa Tavares, SIC, 7-1-13).

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

124 - Tempos de Apocalipse


1 - Olá, amigas e amigos! Bem se vê que, por sua própria culpa, a vida da Humanidade se está complicando de uma forma dramática. Em bom rigor, porém, devíamos estar aqui a referir-nos só à parte da Humanidade de raiz ocidental. Mas … como assim? se, hoje em dia, com toda esta globalização, quase todas as particularidades regionais se esfumam?
Na América, numa escola, às mãos de um tresloucado carregador de armas e munições, um bando de crianças e ainda outras pessoas pereceram; na Índia, uma jovem senhora, usada e abusada à tripa forra por uma chusma de criminosos, veio a falecer; em Luanda, à saída de uma assembleia da IURD que prometia resolver todos os problemas de cada um, vários fiéis foram espezinhados e mortos numa saída em pânico; e até, aos políticos da América e da Comunidade Europeia, só a iminente queda no abismo, cavado fundo à sua frente, os move a encontrar soluções inadiáveis.

         2 – Durante longos mil anos, na Europa medieval ocidental, vigorou uma sociedade assente na Religião, na Tradição e na Autoridade, os três pilares de onde procedia, para toda a gente, a mundividência e as regras necessárias para as pessoas guiarem as suas vidas.
         Mas logo no início da Idade Moderna - aliás como seu mais importante constituinte -, apareceu o racionalismo, segundo o qual se centrava na razão de cada um a capacidade de se conhecer a si próprio e conhecer o mundo, e bem assim poder orientar a sua vida. Durou e foi-se acentuando por vários séculos esta orientação, tempo mais que suficiente para que, através desta mesma tendência, os três referidos pilares sociais fossem crescentemente corroídos e perdessem a validade, como princípios orientadores.
         Pela razão - pensava-se - o ser humano será capaz de criar o melhor dos mundos para cada um e para a sociedade em que está inserido. E assim se foram desenvolvendo a ciência, a técnica, também o Estado Social, tudo coisas muito boas para darem segurança e bem-estar, pelo menos material, a cada ser humano.
         Diga-se agora que este espírito racional, enquanto tal, é o factor mais importante para que as pessoas possam por si próprias, interiormente, tomar conta das suas vidas e ser mentalmente autónomas, sem terem muita necessidade de se apoiar naqueles três antigos pilares. Mas o que aconteceu foi que tal racionalismo, para além de criar nos indivíduos um exagerado optimismo - que tem funcionado como um dos piores males para a Humanidade –, levou só a alguma segurança e bem-estar materiais, sem vertebrar os indivíduos para a sua autonomia mental.
         Acresce ainda que, nestes últimos tempos, o capitalismo selvagem tem soltado sem entraves as suas garras sobre as nações, desencadeando crises financeiras e económicas sobre todo o globo e deixando atrás de si não só um rasto de destruição e miséria como também profunda inquietação nas pessoas. Elas foram apeadas e desceram fundo, em relação àquele optimismo e àquele estado de segurança, e, porque se desligaram dos antigos pilares que costumavam dar segurança e sentido para a vida, sentem-se agora perdidas, abandonadas, sozinhas, sem terem quem as guie.

         3 – Tempos muito difíceis são estes para a Humanidade. Tão difíceis que muitos indivíduos já se imaginam estar para lá do fim do mundo e que ... o apocalipse está aí e é agora.
         E agora, depois do fim do mundo e de de novo nascermos, que faremos todos e cada um com a nova humanidade, oferecida e posta agora em nossas mãos para a vivermos? Todos, pois! Não somos assim tantos como isso, neste vasto Universo! Talvez até que, só na boquita de uma criança, haja mais microvidazinhas do que todas essas vidas humanas grandes do mundo!
         Que faremos agora, todos, com a nossa humanidade? Quem nos ilumina? Quem nos guia? Que revelação ou revelações nos trará o apocalipse? Qual será a revelação final? Que conteúdos terá?
 Ora, tal revelação poderá começar por termos de juntar e aproveitar alguns cacos ainda com préstimo, cacos daqueles três pilares que lá atrás fizemos desabar, e até talvez possamos encontrar pedras preciosas, genuínas, que possam estar perdidas no meio desses escombros. Teremos de valorizar os afectos – nunca como agora sentidos, porque originais e novos – valorizar os afectos entre os humanos porque cada um de nós só poderá continuar a viver convivendo com outros. Teremos de comer o pão da dúvida – nosso principal alimento mental – mas também, com outros companheiros, tentar fazer da dúvida uma probabilidade ou até uma certeza. Teremos de preservar, enfim, a nossa humanidade, não só profundamente nos ligando uns aos outros como também ao húmus da Terra, que ele é que nos faz humanos.
         E sobretudo, sem menosprezar o sagrado que muitos possam ainda encontrar nas religiões, o que temos urgentemente de valorizar é o sagrado humano, o sagrado que há em cada pessoa e nas nossas instituições democráticas. A esta resplandecente luz, sagrada luz, aquelas crianças americanas mortas, aves ainda quase implumes e sem jamais poderem voar, e bem assim aquela jovem indiana usada e abusada e também sem jamais poder encontrar o amor, todas serão para nós quase deusas, sacratíssimas deusas, e ainda garantia de que acções tão execrandas não podem repetir-se.
         À mesma resplandecente e sagrada luz, por contraste, também serão vistos os que se entregam a explorar com usura e especulação o dinheiro sangue das nações, esses tenebrosos tubos digestivos sem alma, comilões insaciáveis de dinheiro, tubos digestivos a engrossarem à volta de si mesmos, cilindros de sebo que, por concordância e decisão das nações, terão de rolar para um abismo de trevas.
Assim, se cumprirmos estas revelações, bendito apocalipse que nos vem perturbar a alma. É um novo nascimento.

domingo, 6 de janeiro de 2013

123 - O Dinheiro é o Sangue das Nações


                                                                              Senhor Director:
A 20-11-2012, na Antena-2, soube do doutoramento de uma portuguesa, em Londres, que dissertou sobre BANCOS ÉTICOS, bancos para um desenvolvimento sustentável, uma economia verde; bancos, enfim – acrescento -, que lidem com o dinheiro segundo a sua real substância de sangue da economia das nações, com o qual portanto não se pode negociar com especulação nem usura.
Considerar o dinheiro como o sangue das nações não é só criar uma nova ordem para o trato com o dinheiro, supervisionada pelos eleitos do povo. Porque, para além de se criar nova ordem financeira, também se centrará o desenvolvimento dos humanos na sua integral humanidade, de cada um e de todos.
Por tudo isto é que ansiei por ver no nosso jornal um condigno tratamento desse trabalho de doutoramento, não fosse o assunto tão premente e importante, para nós e para o mundo. Ansioso, então. Mas agora, desiludido? Muito obrigado.


Nota: Esta carta foi enviada ao jornal Expresso, a 6-12-2012.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

122 - Ano Novo 2013



Eis-nos em 2013
“depois de Cristo nascido”:
mas como, “depois de Cristo nascido”,
se só Jesus é tempo
e Cristo só nasceu
na fé dos que acreditam?

Não foi o doce Jesus que nasceu
nas palhinhas deitadinho,
o menino Jesus temporal
filho de José e Maria?

Como pode Cristo ser
marco do tempo e da história
se ele está fora ou transcende
esse tempo e essa história?

Eis-nos em 2013
depois de Jesus nascido;
bom ano para todos os homens
sejam crentes ou não
de Jesus companheiros
 a comer o mesmo pão
cereal integral de mudanças e de tempo