1 - Olá! Lembram-se daquele Requiem famoso, daquele(a) Lacrimosa Dies illa, tão imponente
quanto aterrorizador? Desse dia final que, por ser tão determinado e preciso e
terrível, era um dia de género feminino e não masculino? Mas não, não é só sobre
isto que vamos falar. Aliás, o jovem Mozart nunca foi um terrorista: a arte
musical, de beleza inexcedível, é toda sua, mas o terrorismo verbal é de
outros!
Já aqui noutros textos dissemos que
somos muito mais emoções do que pensamento. Mozart, menino-prodígio e génio
musical, é prova disso mesmo.
Aos seis anos de idade, a criancinha
Wolfgang Amadeus Mozart esteve no regaço da maternal Imperatriz Maria Teresa,
mãe de dezasseis filhos e mãe do Império, e os dois se beijaram com ternura. Até
ao fim da sua vida, com 35 anos, “Mozart buscou incessantemente o afecto e o
reconhecimento dos outros, não conseguindo porém evitar que o desdém acabasse
por prevalecer”.
2 - No decurso da evolução na vida
animal, o aparecimento da impassível e fria luz da razão, constituinte ao que
se sabe exclusiva dos humanos, dá-se só na sua ponta final. O que fica para
trás são emoções e não pensamento. Aliás, o nosso pensar vagabundo mas também mesmo
o nosso pensamento dirigido não serão sempre ou quase sempre pensamento
motivado em emoções ou também motivador de emoções? O que é por exemplo a
criatividade do espírito, a não ser especialmente ele andar a agenciar
bem-estar emocional para o corpo, para o corpo enquanto tal e para o corpo
enquanto fonte do próprio espírito, o qual encontra no corpo garantia de
subsistência?
Até enquanto alimentamos o espírito,
nós estamos também a cuidar das nossas emoções, não é? Com efeito, por mais
especulativa que seja a actividade que o esteja a mover, ele está sempre a
influenciar as emoções e a trabalhar para elas. Haverá sempre o prazer das
descobertas que vai operando, ou a dificuldade e a dor por não encontrar o
desejado. Isto, sem falarmos de determinados prazeres espirituais, como o da
arte, que fazem as delícias do coração, e portanto das emoções.
3 - Agora, na vida de Mozart, há o
caso do terror (por si?) infligido à irmã e à mãe, por elas pensarem ele ter
cometido um sacrilégio, ao raptar e assim profanar, a poder de copianço por
memória, um exclusivo musical para serviço religioso só na capela do papa, em
Roma.
O caso pode contar-se como segue.
Quando tinha 14 anos, Mozart e o pai, numa das muitas viagens artísticas que os
dois fizeram pela Europa, estiveram em Roma onde, na capela do papa, assistiram
a um ofício litúrgico da Semana Santa, em que se tocou e cantou um Miserere a nove vozes, peça escrita
havia mais de cem anos mas ainda peça exclusiva da Capela Sistina, isto é, uma
obra que só podia ser desempenhada nesse local. Vai daí que o rapazinho, génio
para a música como talvez mais ninguém, ouviu com atenção toda a obra e, no
mesmo dia mas já na hospedaria, escreveu de memória todo esse número musical.
Havia é certo, na sua escrita, pequenas incorrecções em relação com o original
ouvido, mas logo no dia seguinte as corrigiu, depois de ouvir de novo com o pai
a mesma peça, no mesmíssimo local.
Admirados e contentes com o sucedido,
o pai Leopoldo (Mozart) e o filho Wolfgang escreveram à família a relatar tal proeza.
Mas a mãe e a irmã, em reposta, tiveram uma reacção bem diversa, pois “estavam
preocupadas com a possibilidade de Wolfgang ter cometido um sacrilégio e
incorrido na pena de excomunhão”.
Pode dizer-se agora que, hoje em
dia, nós vemos esse assunto a outra luz, relativizando esse havido terror ou,
pelo menos, essa grande preocupação da mãe e da irmã. Com efeito, hoje, não só
não haveria tal exclusivo – porque se houvesse, ninguém lhe ligaria –, como
também ninguém se importaria com tal pecado e tal pena. Mas o facto é que, nesse
tempo, esse caso aterrorizou por haver a hipótese de sacrilégio e posterior cominação
da pena de excomunhão!
Vamos agora ao Requiem, essa peça de inolvidável beleza. Como é possível a arte
mais sublime, como é a de Mozart no seu Requiem,
servir uma letra que em vários passos não é menos que terrorista, não só pelas
suas inverdades como também pela exploração que faz das emoções dos crentes? Será
porque as palavras e as frases, quando as cantamos ou tocamos, perdem a
veemência do seu sentido? E tudo isso no século do Iluminismo e já depois da
Revolução Francesa! Bem andou a instituição religiosa em ter recentemente
retirado do circuito litúrgico tão nefastos textos.
4 - Segundo pensa Hannah Arendt, a
cadeia das falácias metafísicas desmoronou-se, e agora só há que aproveitar algumas
jóias que ficaram entre os escombros. Tal cadeia tem assentado na Religião, na
Autoridade e na Tradição. De facto, não se podia tocar na Religião nem na Autoridade
nem na Tradição.
Há com certeza Autoridade e
Tradição, fora da Religião. Mas nesta, de uma forma muito especial, encontram-se
as outras duas. Sobretudo na confissão religiosa que, para além de não aceitar
o livre exame das Escrituras, considera a Tradição como fonte de fé.