domingo, 28 de agosto de 2011

PISTAS DE LEITURA DO TEXTO 30

Sobre o “outro mundo”:
- Mundo sensível ou material e mundo simbólico ou mental:
- Mundo simbólico: de palavras e sentimentos e ideias e artes e poemas e muito mais;
- Sócrates, pensador: grande craque, no mundo simbólico;
- Na praia, papagaios ao vento, semelhantes às nossas ideias e outras entidades aéreas;
- Dois mundos ao dispor do ser humano.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

TEXTO 30

Sobre o “outro mundo”

Olá!
Vamos hoje aqui falar … imaginem só! Vamos falar do “outro mundo”! “Do “outro mundo”? “Sim, isso mesmo, falar do “outro mundo”!
Publicámos há dias um texto sobre o mundo (27), mundo que todos conhecemos muito bem, porque os nossos sentidos estão sempre a embater nele, e ele nos sentidos. Mas hoje falaremos do “outro mundo”, mas é só um falar de mero entreabrir da cortina dos seus segredos e prodígios, só por instantes, que depois os amigos e amigas leitores poderão imaginar muito mais.
É do mundo simbólico que falamos - aliás mundo em que já tocámos em texto muito anterior (9) e, evidentemente, no texto 27 - desse mundo que os humanos vão fabricando, levantado em palavras e em ideias( partindo dos códigos linguístico e literário) e em cores (pintura) e em sons (música) e em movimento (dança) e em volumes esculturais e arquitectónicos e mais e mais.

Ouvi há dias, na Antena 2, o segmento final de um poema dito pela autora. Dizia ela assim, se o ouvido e a memória não me traem: “Para o impossível, só podemos caminhar de olhos fechados. / Como a fé e como o amor”.
Há de facto olhos fechados na fé e no amor. Aliás, de algum modo, já há fé no amor, como também, muitas vezes, já existe amor na fé, na fé em alguém, na vida, em Deus. De facto, amor e fé são sempre, definitivamente, um ousado mergulho arracional, e por isso, de algum modo, vai-se para eles de olhos fechados. Mas a fé e o amor serão sempre impossíveis?
Mas há de facto muitas vezes o impossível, de fronte aos nossos olhos, mesmo e até sobremaneira nos domínios da fé e do amor. E em relação a esse impossível, só teremos a hipótese de caminhar para ele de olhos fechados? Não podemos também, simplesmente, não caminhar? São muito acalentadas utopias? São sonhos tentadores, embora sem sabermos se são exequíveis? Mas não são os olhos, olhos abertos para fora e também abertos para dentro, o primordial sentido de que se serve a razão? É certo que a razão se engana muitas vezes, e por isso é bom que a fé e o coração insistam naquilo que, à razão, parece ao princípio ser impossível. Mas quando não há possibilidade de entendimento entre os dois domínios, terá a razão de capitular? Devemos caminhar de olhos fechados? Em suma, para aquilo que a razão continua a ver como redondamente impossível, então, ou não vamos caminhar para lá, ou, se caminharmos, só podemos ir realmente de olhos fechados, pese embora o risco de nunca mais os podermos abrir (14)!
Nós não somos estátuas de mármore, frias e impassíveis, mas também não podemos incendiar e destruir a nossa razão, ao calor das emoções! É um equilíbrio que pede persistência e arte, que não podemos deixar de intentar, sob pena de deixarmos de ser humanos.

“Mestre, eu gostava muito de ser justo, de ser honrado, sobretudo de não ser considerado uma pessoa imbecil”, diz alguém ao mestre. Mas Sócrates responde, só perguntando: “Mas o que é isso de se ser “mestre”? E o que será a “justiça” e a “honra”, que gostavas de possuir, e a “imbecilidade”, que os outros detestam em ti, e tu também”?
Mas porque é que esse chato perguntador do Sócrates - que até numa comédia grega intencionalmente designada “As Nuvens” foi representado no ar, numa gaiola, para assim todos mofarem do seu jeito de ensinar -, porque é que Sócrates ensinava só fazendo perguntas? Terá sido pelo seu jeito de pôr os seus discípulos a pensar sobre o sentido das palavras que usamos para significar as ideias, e a pensar outras ideias a dizer por outras palavras, até palavras novas por ainda não existirem e portanto a terem de ser inventadas pelos já inventores das ideias a serem ditas?

Na praia, crianças levantam papagaios de papel, no ar. Leves, eles adejam ao vento, sempre guiados por umas mãozitas e uma cabecita em terra. Às vezes, eles afocinham no chão de areia ou de duna, por dificuldades encontradas no ar, ou por canhestro manejo das mãos e da cabeça em terra. Não serão assim também as ideias e outras entidades aéreas, que todos nós fabricamos e pomos no ar, esvoaçando ao vento? Que peso ou consistência têm elas, para além dos que nós, humanos, lhes damos, elas e nós saídos do barro, do húmus, do esterco? E no entanto, mesmo assim, agarradas à terra mas pairando no ar, elas são poderosíssimas, tanto para o bem como para o mal. Elas são pombas ou aves de rapina; elas são ninhos de ternura ou de ódio; elas ressumam de verdade e de amor, mas também de ódio e de mentira.

Já no primeiro texto sobre o mundo (27) dissemos que nele havia coisas muito lindas, lindas de morrer (simbolicamente), mas agora acrescentamos que também há coisas muito feias, feias de morrer, morrer mesmo … como é a acção de quem mata. Mas quem mata também morre logo, pelo menos em sentido do nosso mundo simbólico. Dois mundos ao dispor do ser humano – dois, ou um só de duas faces? - onde, se quiséssemos, podia quase só correr “leite e mel”, mas onde, para nosso infortúnio, correm desgraças, não menos que mel e leite.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

PISTAS DE LEITURA PARA O TEXTO 29


Sobre a vida e sobre a morte:
- Os outros seres vivos aparecem-nos feitos, desde a nascença; o ser humano só aparece feito … na morte;
- Os outros seres vivos não têm tempo; nós somos seres de tempo;
- O que nasce de um ser humano, com a sua morte;
- A morte aguça-nos o sabor do vinho da vida.

sábado, 20 de agosto de 2011

TEXTO 29

Olá, caras amigas e amigos que trabalham ou residem no lar onde estive, e ainda muitos outros amigos e amigas espalhados pelo mundo!
Só porque gosto muito da vida, é que já várias vezes aqui falei da morte. Lembro de passagem que, a este blog, três meninas e eu demos o nome de “O Clube dos Poetas Vivos”, e por subnome “O fascínio pela vida, pela vida breve que nos possui neste planeta azul” (texto 5). Lembro ainda que o mesmo nasceu inspirado em pensamentos sobre a vida e sobre a morte (textos 1-4), e veio à luz no vivo contexto de um lar de meninos velhinhos que, tal como aquele muito amigo senhor Manuel, se iam despedindo dos que vivos ainda cá ficávamos (1-5).
Para os outros seres vivos, são necessários só erva ou terra ou também carne, água e ainda luz … e mais nada. Nem tempo é preciso porque, para eles, simplesmente não há tempo; nós é que precisamos dele para irmos medindo o seu crescimento. Nascem e aparecem-nos feitos, já prontos para passarem a sua vida. Terá uma macieira, para dar em devido tempo suas flores e frutos, de passar por doze anos de escolaridade obrigatória, e ainda de aprender durante toda a vida até morrer? Logo de pequenina, ela nos aparece de todo como macieira.
Quando eu era criança, lembro-me de ter visto um bezerrinho a nascer. Já no chão do curral, a mãe vaquinha lambeu-o ternamente, por três vezes, e logo ele, primeiro titubeante das patitas dianteiras, logo depois se pôs aos pinotes naquela mornidão do curral, assim pronto nos aparecendo a nós e ao mundo. Ao passo que, só vivendo e existindo no tempo, o ser humano precisará de ir crescendo por dentro, de ir desenvolvendo responsavelmente o projecto da sua vida ainda não feita … de modo que só na sua morte ele nos aparece pronto, ele nos aparece feito.
Quanto aos outros seres, eles iniciam a sua vida logo que estão prontos e acabados para viverem, enquanto que a vida do ser humano só está acabada … quando deixa de ser. A vida humana só assume a sua plena realidade quando acaba na morte. Além de limitar a vida humana, a morte, como diz Arendt, “também lhe confere uma plenitude silenciosa, arrebatando-a do fluxo incerto a que todas as coisas estão sujeitas”. Com o seu nascimento, no mundo, o ser humano já nos aparece viável, sim, mas a sua vida só nos aparece definitivamente na morte, esteja esta ainda longe, ou já perto.

Pronto e feito e acabado o ser humano, para quê? É que a morte é morte mesmo! Aquele ser morreu e nunca mais aparecerá aos nossos estimuláveis sentidos!
Morreu, sim, mas algo profundamente seu, bem vivo, fica no mundo simbólico dos que, tendo-o conhecido, vivos continuam. Diremos melhor: com a sua morte, algo dele, bem vivo, “nasce” no nosso mundo simbólico. Porque é a sua morte que, para nós, nos ilumina a unidade e a inteireza da sua vida, até à plenitude, e mesmo cada pormenor da sua vida também a essa plena luz se pode ver. Suas palavras e gestos, ditas e feitos no tempo, não podem mais ser desditas ou anulados, porque tudo foi esculpido na eternidade.
A crónica da Maria José Nogueira Pinto, escrita uns dias antes da sua morte, não a pude ler, embora dela tenha andado à procura. Pelos órgãos de informação, soube que a Maria José escreveu no seu texto, por exemplo, mais ou menos isto: “Cá estou eu no meio da vida. Não vou deixar cair os braços, mas também não vou esbracejar”. Cá está um caso evidente de como tais palavras, escritas naquele momento e naquela situação, assumem uma especial densidade e se tornam exemplares, não só para definir a globalidade da sua vida, como ainda para a conduta de quem fica.
Mas eu nego-me a falar só desse caso, com solenes cerimónias do seu passamento, na capela da sua casa no Campo Grande. Falo também dos esquecidos, dos que não têm casa e muito menos capela, nem andam na boca nem na caneta dos meios de comunicação social; dos desprotegidos da boa fortuna em toda a sua vida, com virá a ser o caso daquele homem muito querido de setenta e muitos anos que um dia me ofereceu logo pela manhã um copito e tinha ainda uns tomates muito saborosos para si e para a companheira (11.1), e também o caso daquela moleirinha velhinha de alma alva (11.2), e de grande parte da Humanidade.
Este texto podia ter sido escrito na movediça areia de uma praia, na laje dura e lisa de uma montanha, em papel contra a parede branca daquele abençoado cemiteriozinho (13.2) … Onde foi escrito, afinal já bem não sei. Mas sei que foi no tempo!
Somos seres de tempo, datados, com prazo de validade, seres de vida e de morte, seres mortais. E é à luz da morte, que sempre trago comigo e me ilumina, que se me aguça ao paladar o delicioso sabor do vinho da vida.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

PISTAS DE LEITURA DO TEXTO 28


Azenha Velha:
- Um vale “ameno e deleitoso”;
- O abandono de cães e de pessoas;
- O capitalismo e o mercado;
- Estar a sós comigo mesmo.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

TEXTO 28

AZENHA VELHA
Olá! Não foi difícil, a pé, chegar da minha casa até aqui. Agora nesta placa que diz “Turismo Rural” eu vou virar à direita, e o restaurante, que é o destino desta não muito pequena viagem, não pode estar muito longe. Parece haver à esquerda um belo e longo vale, ligeiramente subindo sempre junto à Estrada 111, todo densamente povoado de frescura e de vida vegetal e também alguma animal.
Por esta estradinha onde vou, vem uma menina velhinha que está prestes a cruzar comigo, e talvez ela me possa dar mais alguma informação. “Bom dia, minha senhora, é por aqui, por este portão de ferro antigo, que se vai para o restaurante”? “Pode ser, sim! Vai por aí adentro por esses carreiros entre as árvores, e lá ao cimo facilmente o encontrará”. “Muito obrigado, senhora! Então vai agora dar o seu passeiozito matinal”? “Vou sim. Eu até vejo muito mal porque fiz uma operação aos olhos, e ainda vejo muito pouco”. “Ah, pois, então tem de esperar mais alguns dias pela recuperação, ter paciência … e andar contente! A senhora anda contente”? “Ando, pois”! “Isso é que é importante! E vai ver que ficará aí com uns olhinhos novos, para encontrar na vida tudo aquilo que deseja! Obrigado, senhora”.
Logo ao antigo portão de ferro, eu sinto um intenso arfar talvez de cão … e logo depois o buldogue, ao pé de mim, mudo, farejando bem as minhas canelas despidas. E como ainda há dias fui mordido por um malvado rafeiro, receio um tanto que agora o “César” me faça o mesmo. Mas vou-lhe falando de mansinho, sempre de mansinho e com afecto e agora já sem temor, vou-lhe passando a mão em festas pela fachada negra quase lisa do focinho … até que ele me abandonou distraído por alguma lagartixa.

Um secreto fio de vida líquida escorre pelo campo, alimentando a verdura do vale. Não conheço o sinuoso caminho que traz este húmile ribeiro, a montante; mas a jusante, eu tenho-o seguido e explorado com prazer, quase até ao sítio onde aflui ao Mondego, não muito longe da foz. Canaviais ondulantes nas motas de um e de outro lado da veia, motores tirando água para regar os campos, e às vezes um rebanho a pastar em campos adjacentes.
Luxuriante de vida é todo o vale. Há choupos e cedros e plátanos e chorões e palmeiras e tílias e pinheiros mansos e salgueiros e fetos rasteiros e muitos tapetes de relva verde e macia, podendo nós nesta descansar em bancos de jardim. Também há galinhas e algumas ovelhas, agora estas já deitadas com os seus filhotes no remanso fresco de uma sombra. E sobretudo há uma mansa e elegantíssima eguazinha que, ora pasta pachorrenta pelo vale, ora desata a galope por aquela vastidão, toda contente da vida. Contente, “a Oásis”, não “o Oásis” do Santana, na praia, mas a eguazinha? Provavelmente sim, contente! Mas não com certeza animal de tempo, como nós somos!

E, de súbito, o canil, de muitos habitantes, alguns deles ladrando. “É preciso alguma coisa?”, perguntou-me, vinda lá de dentro, uma das senhoras que tratam dessa bicharada abandonada. “Não, minha senhora, só estou admirando tantos cãezinhos juntos. È o canil da Câmara”? “Não, não é”. “Então, onde vai a senhora buscar alimento para tanta gente”? “É muita, é! Olhe, são mais de duzentos! E para comerem, andamos por aí a pedir”!
Há tempos, na cidade vizinha, encontrei uma mamã e disse-lhe: “Minha senhora, a sua menina tem andado um pouco triste, não tem”? Confirmando esse estado, adiantou-me que já tinha falado com ela sobre o assunto, a ela dizendo e perguntando: “Ó filha, tu já tens carro, já tens emprego, já tens namorado e já tens cão, o que é que te falta mais”?
Faz então parte do bem-estar interior de uma menina o “ter cão”, tal como o “ter namorado”? Para mais, quase sempre um cão de corpo avantajado num apartamento exíguo? È tudo só uma questão de “ter”, e nada de “ser”?
Oxalá, não tenha acontecido a esse namorado, nem a ela, namorada, aquilo que tantas vezes acontece entre pares de namorados ou companheiros, tão semelhante ao que aconteceu a estes cãezinhos abandonados.

Nesta sociedade capitalista, a vida tornou-se relativamente fácil, e por isso, facilmente fomos atrofiando e perdendo perigosamente a nossa capacidade de esforço por alcançarmos coisas difíceis, sobremaneira bens espirituais. Aquilo que nesta esfera vamos tendo, é aquilo que tal sociedade põe à frente dos nossos olhos, e não aquilo que os nossos olhos procuram … porque eles deixaram de procurar! De modo que, em termos de mercado, quando tudo aquilo que juntámos à nossa volta deixou de satisfazer os desejos, facilmente nos descartamos de tudo isso, como empecilhos de lixeira. Mas o mercado já tem prontos outros topos de gama que ele mesmo põe à frente dos nossos olhos para procedermos à desejada e necessária substituição.
Substitui-se um namorado, não muito diversamente de como se abandona ou se troca de cão. É claro que, quando a sociedade capitalista entra em depressão, e as pessoas deixam de poder satisfazer os seus materiais desejos, então isso é o vazio e o desnorte, férteis terrenos para se alimentarem utopias que redundam em fatais desgraças.

Ali junto, de sentinela ao restaurante, levanta-se um exuberante chorão, continuamente derramando suas lágrimas verdes - não de tristeza nem de alegria mas muito belas -, saindo da alta fonte dos seus olhos e caindo em miríades de fios, quase até ao chão.
Entrámos então, com sua licença, nesse aprazível espaço onde outrora funcionou uma azenha, água mansa e múrmura fazendo girar rodízios, cereal migado entre moles de granito, alva farinha para operar em fornos de lenha o milagre quente dos pães. Gostosos estavam também os peixes do almoço, depois das entradas e antes de uma sobremesa breve, a que se seguiu o cafezito, já cá fora, na esplanada, do lado do grande campo de erva tenra.
E de novo, ali perto, a eguazinha tosando no chão, cabeça baixa, como se mais nada quisesse senão tenra erva. Como se mais nada quisesse, mas quer! “Todos os dias ela vem aqui, a esta hora, à espera de trincar a cenoura que lhe damos”, diz-nos a menina servente. “Ela não é nada tola, não!”, continua ainda. Não é nada tola, não senhores, porque, com a barriguinha cheia de erva e do bom petisco da cenoura, à hora de mais calor, ela cavalga em direcção ao seu quarto e à sua cama, para uma valente soneca. E depois, lá começa ela de novo a faina de roer pela quinta a erva mais macia e mais verde.

Regresso a minha casa, onde agora não está mais ninguém. Por isso, “eu” posso ficar “comigo” a sós, na casinha do meu corpo, em íntimo convívio com o meu coração, em íntima mas racionalmente equilibrada cumplicidade com os seus desejos, prestando também terna atenção – atenção já contaminada de ternura – aos órgãos do meu corpo, e comandando, se o achar conveniente, uma respiração profunda e a consequente e demorada e deliciosa apneia.
Em solidão, o espírito reentra assim na sua casinha, de onde emerge em cada agora como flor e fruto ou como luz; lá é a sua fonte perene, em todo o limitado tempo que lhes é dado aos dois para viverem; entrando o espírito para governar e orientar essa casinha, dela recebendo para tanto desejos e emoções e sentimentos e sugestões…mas também carreando para lá coisinhas espirituais, de si próprias, que fazem muitas vezes as delícias do coração, em perfeito entendimento entre os dois; o “pensar do espírito, fora do espaço e do tempo”, mergulhado num “corpo de espaço e de tempo”; tudo isto, neste agora frágil mas também eterno. Que delícia será saber viver assim … e viver mesmo!

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

PISTAS DE LEITURA DO TEXTO 27


27 - Sobre o Mundo:
- A multiplicidade e a variedade dos seres vivos;
- Quantos mundos há? Um só mundo ou tantos quantos os seres?
- E se fôssemos melros ou coelhos bravos?
- A obra e a arte dos humanos também são mundo? E as suas ideias?
- O mundo é objectivo ou subjectivo? Ou é objectivo e subjectivo?
- Não será a nossa subjectividade, um conteúdo do mundo?
- O mundo (ainda) tem coisas boas: mas qual será a melhor coisa do mundo?
- Porque se fala do regaço das meninas núbeis, a quem se dedica o texto?

sábado, 6 de agosto de 2011

TEXTO 27

Olá!
Ando agora a passear por estas veredas campestres, terras ainda recentemente cultivadas aqui junto mas agora tristemente incultas, mato alto um pouco mais ao largo e sempre de um e do outro lado do caminho, e já distante a floresta densa, quase impenetrável.
Quantos seres vegetais e animais, entre espécies e indivíduos, haverá nesta ampla redondeza? Quem os ensina a crescer, a procurar comida, a digeri-la e a procriar? Quem é o mestre deste imenso coro, a todos levando a desempenhar o concerto da vida, cada um com a sua partitura diferente, e tudo sempre sem falhas? É claro que, entre os seres animais, ainda não estamos incluindo o ser humano! Porque este, no concerto da vida, é o único que pode dar as suas irritantes fífias, mas também só ele, embora de forma muito limitada, pode ser maestro de si próprio!
Como sente cada um desta imensíssima multidão de seres, o mundo em que vive? Como vê e ouve cada um deles – sendo seres animais dotados destes sentidos – o mundo em que circula? E já agora, sem excluirmos os anteriores, vamos também ao nosso caso de seres vivos e falantes e pensantes. Como é que cada um de nós vê e ouve e também cheira e saboreia e tacteia o mundo em que está? Quantos mundos existirão? Um só mundo, ou tantos quantos os indivíduos todos de todas e cada uma das espécies vegetais e animais? Cada um com o seu, sempre todos distintos uns dos outros?
No nosso caso, porém, terá simplesmente cada um, só um mundo, ou um mundo haverá para quando está desesperado, e outro para quando está eufórico de alegria, e mais outro de quando foi criança … e por aí fora até ao mundo com que iremos morrer? Existe “o” mundo, ou só existem os meus mundos e os teus e os dela … e por aí fora sem ter fim? Antes de eu nascer, o mundo já existia? E quando eu morrer, ele irá continuar?
Está ali uma menina a dizer que gramava ser melro, melro-menina, toda vestida de preto e com um biquinho amarelo, para fazer companhia aos melros que por aqui já existem, e todos correrem em rasantes voos por sobre esta várzea florida, e também para, metidos em pinheiros altos, todos me acordarem sempre de manhã e a hora certa, em delicioso concerto. Que música é essa, meus melros, música também do mundo mas tão diferente das nossas músicas e não menos agradável? Onde aprenderam vocês a executar esses trinados tão cristalinos e doces? Mas o que mais importa aqui é saber como vai aquela menina-agora-feita-melro, ver o mundo! Como será o mundo de melro? Um melro-macho verá o mundo como vê um melro-menina?
E agora levanta-se acolá um menino a dizer que lhe apetece ser coelho bravo, sim, ser coelho de um mundo solto, em campo aberto, onde possa apanhar sol e chuva e vento nos pêlos do focinho, e se delicie a tosar ervas agrestes e bravas, coisa bem diversa daquelas dietas de plástico a que estão habituados os de gaiola. E então, como será o mundo agora para aquele que passou a ser coelho, mas antes era menino? Não vai acontecer que tal coelhinho recente, bem como também aquela recente menina-melro não irão suportar a mudança e morrerão aterrados? É claro que um coelho e um melro verdadeiros, se virassem seres humanos, também aterrados morreriam, não é?
Mas há aqui mais uma coisa muito gira que se passa com esta menina e este menino que felizmente se não passaram para melro ou coelho pois ficariam perdidos, e a coisa gira é que a menina gosta muito de esculpir, e ele de escrever obra mesmo literária. E então, pensem lá: estas esculturas e obras literárias que eles vão produzindo não irão também elas compor o mundo, como suas partes integrantes? Mas que mundo, do objectivo mundo ou do mundo subjectivo de cada um?
Dizia-me há dias uma jovem, saudavelmente valorizando a auto-estima, que ela era “uma pessoa de cinco estrelas”! É claro que logo concordei, não sem que em pensamento – só em pensamento - pudesse acrescentar uma ligeira precisão: de cinco estrelas, não, mas de cinco e meia! Pois então, e aquela loira cabeleira, cabeleira de cometa, que num instante ondula leve ao vento, mas logo noutro lhe pende e descansa em sossegado molho no ombro?
São desta menina e do seu mundo as estrelas e agora também a cauda do cometa, ou, pelo contrário, tudo isso pertence ao objectivo mundo, que tem estrelas e cometas? Que estranha mas quão bendita é também tal promiscuidade, entre nós e o mundo!
Embora a menina de facto seja mundo, é do espírito florescendo do corpo que nasce a subjectividade que faz com que ela diga que é e seja mesmo um “eu”, em alteridade com o resto do mundo! E tal centro de subjectividade é tão poderoso que leva a que o mundo seja mesmo o seu mundo, ou o mundo de cada um, consoante as diversas subjectividades!
Quanto àquela história das esculturas e dos livros, como eu vejo que as esculturas são de pedra, pedra-mármore, e também posso tocar-lhes e até comprar uma ou duas, e como também posso pegar naqueles livros feitos de papel e folheá-los e lê-los e cheirá-los e emprestá-los, então elas e eles integram o mundo objectivo, não é? Mas elas são esculturas e esculturas muito belas pelo menos para mim, podendo até integrá-las num estilo de escultura moderna, que me agrada muito; enquanto que, quanto aos livros, além de serem livros e os achar também muito belos, eles fazem-me sonhar e até relaciono lances da sua acção com passos da minha vida! E então, por estas e muitas outras razões que só no foro íntimo cada um sabe encontrar para si, esculturas e livros pertencem também ao mundo subjectivo de cada um!
Mas o mundo, de facto, existe em termos objectivos. Antes de mais, nós temos imensos testemunhos do passado, a provarem a sua existência antes de nós. E futuro, ele terá, depois da nossa morte? Tudo leva a pensar que sim, pois que, se cada ponto do passado do qual temos notícia teve o seu futuro, porque há-de então o mundo acabar depois da nossa morte? Para o momento presente, eu sei que o objectivo mundo existe, porque eu vejo e ouço além um cãozito a ladrar, e eu não sou cão nem ladro.
Existe de facto o mundo, em termos objectivos, mas vejam lá, meninos e meninas, vejam todos este estupendo mundo polimórfico e polifónico em que estamos metidos, um só mundo, sim, mas assumindo uma diversidade imensa, tanta quanta o incontável número de seres vivos que o compõem, cada um com a sua peculiar maneira de o sentir, diversidade sobretudo para os humanos, de tal forma nós o colorimos ou contaminamos, a diversos níveis, com a subjectividade de cada um!
Porque o mundo, esse, é que é realmente objectivo. O resto são subjectividades, como é também o caso do “eu” de cada um. E por causa destas e deste é que aquele mundo objectivamente real só nos aparece como o meu mundo, o teu mundo, o mundo dela, e assim por diante. Portanto, o mundo objectivo não é um mundo só de aparências, mas de realidades. Dessas realidades, porém, que mais podemos saber para além do que vai aparecendo a mim, a ti, a ela, sempre diversamente como já vimos? Mas uma coisa talvez todos tenhamos por certa. E é ela que há coisas muito boas no mundo, sim senhor, mas a melhor coisa de todas é alguém poder dizer “não há nada melhor no mundo que o regaço da minha mãe”. Cada “alguém” à sua maneira, naturalmente. Para as meninas e meninos núbeis, mas sobretudo para as meninas que já sonham vir a ser mamãs, aqui está o grande desafio da sua vida!
E agora, aqui chegados às derradeiras linhas deste estranho texto, fica uma pergunta: as meninas e os meninos que leram o texto todo até ao fim, superando todos os escolhos desta tormentosa viagem, esses ficaram tontos com a leitura deste texto sobre o mundo, ou mudou o mundo deles, e também eles com seu mundo? É claro que quando se fala de mundo, também se está a falar de universo! Então, assim, não ganhará este assunto uma infinita amplidão?