AZENHA VELHA
Olá! Não foi difícil, a pé, chegar da minha casa até aqui. Agora nesta placa que diz “Turismo Rural” eu vou virar à direita, e o restaurante, que é o destino desta não muito pequena viagem, não pode estar muito longe. Parece haver à esquerda um belo e longo vale, ligeiramente subindo sempre junto à Estrada 111, todo densamente povoado de frescura e de vida vegetal e também alguma animal.
Por esta estradinha onde vou, vem uma menina velhinha que está prestes a cruzar comigo, e talvez ela me possa dar mais alguma informação. “Bom dia, minha senhora, é por aqui, por este portão de ferro antigo, que se vai para o restaurante”? “Pode ser, sim! Vai por aí adentro por esses carreiros entre as árvores, e lá ao cimo facilmente o encontrará”. “Muito obrigado, senhora! Então vai agora dar o seu passeiozito matinal”? “Vou sim. Eu até vejo muito mal porque fiz uma operação aos olhos, e ainda vejo muito pouco”. “Ah, pois, então tem de esperar mais alguns dias pela recuperação, ter paciência … e andar contente! A senhora anda contente”? “Ando, pois”! “Isso é que é importante! E vai ver que ficará aí com uns olhinhos novos, para encontrar na vida tudo aquilo que deseja! Obrigado, senhora”.
Logo ao antigo portão de ferro, eu sinto um intenso arfar talvez de cão … e logo depois o buldogue, ao pé de mim, mudo, farejando bem as minhas canelas despidas. E como ainda há dias fui mordido por um malvado rafeiro, receio um tanto que agora o “César” me faça o mesmo. Mas vou-lhe falando de mansinho, sempre de mansinho e com afecto e agora já sem temor, vou-lhe passando a mão em festas pela fachada negra quase lisa do focinho … até que ele me abandonou distraído por alguma lagartixa.
Um secreto fio de vida líquida escorre pelo campo, alimentando a verdura do vale. Não conheço o sinuoso caminho que traz este húmile ribeiro, a montante; mas a jusante, eu tenho-o seguido e explorado com prazer, quase até ao sítio onde aflui ao Mondego, não muito longe da foz. Canaviais ondulantes nas motas de um e de outro lado da veia, motores tirando água para regar os campos, e às vezes um rebanho a pastar em campos adjacentes.
Luxuriante de vida é todo o vale. Há choupos e cedros e plátanos e chorões e palmeiras e tílias e pinheiros mansos e salgueiros e fetos rasteiros e muitos tapetes de relva verde e macia, podendo nós nesta descansar em bancos de jardim. Também há galinhas e algumas ovelhas, agora estas já deitadas com os seus filhotes no remanso fresco de uma sombra. E sobretudo há uma mansa e elegantíssima eguazinha que, ora pasta pachorrenta pelo vale, ora desata a galope por aquela vastidão, toda contente da vida. Contente, “a Oásis”, não “o Oásis” do Santana, na praia, mas a eguazinha? Provavelmente sim, contente! Mas não com certeza animal de tempo, como nós somos!
E, de súbito, o canil, de muitos habitantes, alguns deles ladrando. “É preciso alguma coisa?”, perguntou-me, vinda lá de dentro, uma das senhoras que tratam dessa bicharada abandonada. “Não, minha senhora, só estou admirando tantos cãezinhos juntos. È o canil da Câmara”? “Não, não é”. “Então, onde vai a senhora buscar alimento para tanta gente”? “É muita, é! Olhe, são mais de duzentos! E para comerem, andamos por aí a pedir”!
Há tempos, na cidade vizinha, encontrei uma mamã e disse-lhe: “Minha senhora, a sua menina tem andado um pouco triste, não tem”? Confirmando esse estado, adiantou-me que já tinha falado com ela sobre o assunto, a ela dizendo e perguntando: “Ó filha, tu já tens carro, já tens emprego, já tens namorado e já tens cão, o que é que te falta mais”?
Faz então parte do bem-estar interior de uma menina o “ter cão”, tal como o “ter namorado”? Para mais, quase sempre um cão de corpo avantajado num apartamento exíguo? È tudo só uma questão de “ter”, e nada de “ser”?
Oxalá, não tenha acontecido a esse namorado, nem a ela, namorada, aquilo que tantas vezes acontece entre pares de namorados ou companheiros, tão semelhante ao que aconteceu a estes cãezinhos abandonados.
Nesta sociedade capitalista, a vida tornou-se relativamente fácil, e por isso, facilmente fomos atrofiando e perdendo perigosamente a nossa capacidade de esforço por alcançarmos coisas difíceis, sobremaneira bens espirituais. Aquilo que nesta esfera vamos tendo, é aquilo que tal sociedade põe à frente dos nossos olhos, e não aquilo que os nossos olhos procuram … porque eles deixaram de procurar! De modo que, em termos de mercado, quando tudo aquilo que juntámos à nossa volta deixou de satisfazer os desejos, facilmente nos descartamos de tudo isso, como empecilhos de lixeira. Mas o mercado já tem prontos outros topos de gama que ele mesmo põe à frente dos nossos olhos para procedermos à desejada e necessária substituição.
Substitui-se um namorado, não muito diversamente de como se abandona ou se troca de cão. É claro que, quando a sociedade capitalista entra em depressão, e as pessoas deixam de poder satisfazer os seus materiais desejos, então isso é o vazio e o desnorte, férteis terrenos para se alimentarem utopias que redundam em fatais desgraças.
Ali junto, de sentinela ao restaurante, levanta-se um exuberante chorão, continuamente derramando suas lágrimas verdes - não de tristeza nem de alegria mas muito belas -, saindo da alta fonte dos seus olhos e caindo em miríades de fios, quase até ao chão.
Entrámos então, com sua licença, nesse aprazível espaço onde outrora funcionou uma azenha, água mansa e múrmura fazendo girar rodízios, cereal migado entre moles de granito, alva farinha para operar em fornos de lenha o milagre quente dos pães. Gostosos estavam também os peixes do almoço, depois das entradas e antes de uma sobremesa breve, a que se seguiu o cafezito, já cá fora, na esplanada, do lado do grande campo de erva tenra.
E de novo, ali perto, a eguazinha tosando no chão, cabeça baixa, como se mais nada quisesse senão tenra erva. Como se mais nada quisesse, mas quer! “Todos os dias ela vem aqui, a esta hora, à espera de trincar a cenoura que lhe damos”, diz-nos a menina servente. “Ela não é nada tola, não!”, continua ainda. Não é nada tola, não senhores, porque, com a barriguinha cheia de erva e do bom petisco da cenoura, à hora de mais calor, ela cavalga em direcção ao seu quarto e à sua cama, para uma valente soneca. E depois, lá começa ela de novo a faina de roer pela quinta a erva mais macia e mais verde.
Regresso a minha casa, onde agora não está mais ninguém. Por isso, “eu” posso ficar “comigo” a sós, na casinha do meu corpo, em íntimo convívio com o meu coração, em íntima mas racionalmente equilibrada cumplicidade com os seus desejos, prestando também terna atenção – atenção já contaminada de ternura – aos órgãos do meu corpo, e comandando, se o achar conveniente, uma respiração profunda e a consequente e demorada e deliciosa apneia.
Em solidão, o espírito reentra assim na sua casinha, de onde emerge em cada agora como flor e fruto ou como luz; lá é a sua fonte perene, em todo o limitado tempo que lhes é dado aos dois para viverem; entrando o espírito para governar e orientar essa casinha, dela recebendo para tanto desejos e emoções e sentimentos e sugestões…mas também carreando para lá coisinhas espirituais, de si próprias, que fazem muitas vezes as delícias do coração, em perfeito entendimento entre os dois; o “pensar do espírito, fora do espaço e do tempo”, mergulhado num “corpo de espaço e de tempo”; tudo isto, neste agora frágil mas também eterno. Que delícia será saber viver assim … e viver mesmo!