sexta-feira, 20 de maio de 2011

TEXTO 18

Olá, meninas e meninos!
Hoje vou falar especialmente de um amigo e falar com ele, mas talvez dessa conversa os meninos e as meninas possam aproveitar alguma coisa para a vida.
O Francisco é uma pessoa muito querida: muito sério na vida, e dotado de uma exemplar bonomia e de um delicioso humor! Ele entrega-se e integra-se totalmente na sua causa, ela e ele uma só coisa sendo, numa sintonia perfeita.
Conheci-o pela primeira vez...Não, isto assim não está certo! Não está certo porque “conhecer” é “ir nascendo e alimentando-se e crescendo com alguém ou alguma coisa”. Portanto, será preferível começar de outro modo. De modo que o encontrei pela primeira vez na universidade, por acaso até sentados à mesma mesa, onde fomos colegas dos mesmos estudos, isto é, onde um com o outro lemos os mesmos livros e ouvimos os mesmos mestres. Fomos então companheiros, felizmente durante todo o curso. Companheiros, ou seja, um e outro comendo o mesmo pão da ciência, às vezes também comendo o mesmo pão da alimentação física, e também, não poucas vezes, o mesmo pão da sabedoria! Sabedoria sobretudo recolhida de passeios um com o outro no vizinho bosque de mimosas e de choupos junto ao rio, suas águas necessariamente correndo para o mar, aquelas árvores necessariamente crescendo para a luz e estando ali e dando sombra, e nós – livres, por nossa decisão, - nós os dois falando cada um da sua vida, os dois falando das duas, já como amigos, já quase como irmãos...Só assim se pode ir conhecendo o outro. Não se pode conhecer alguém, de uma vez por todas. Conhecer é ir desaguando na amizade e no amor. Amar é a forma mais sublime de conhecer!
Transcorrido esse tempo de estudos, porém, nunca mais nos encontrámos. Também não tenho ouvido assiduamente as suas sábias e contidas palavras. Há dias, porém, a propósito da onda de descrença que está grassando na sociedade, ouvi-o dizer que muita gente “não sabe ouvir a voz do coração”(cito de memória). E portanto – sou eu a concluir – é sobremaneira essa voz que a nós, seres humanos, nos faz temer o deus tonitruante ou nos leva a chamar em nossa ajuda o deus omnipotente e bondoso mais recente.
Mas essa voz, meu caro Francisco, - e sempre sem ponta de desrespeito para consigo - essa voz é a voz antiga do corpo e do instinto e do coração, a qual não pode deixar de ser incendiada ao calor das emoções! Foi Miguel de Unamuno quem escreveu que, na evolução, o ser humano evoluiu demasiado! Porque a voz da razão, a voz nova, é bem diversa da do coração! A fé assenta e como que oficializa essa voz antiga, a voz do coração. E além disso, com todas as suas definições dogmáticas, ela impõe uma barreira intransponível, que portanto não se pode ultrapassar. Bem ao contrário, a razão, que depende da parte mais recente do cérebro, trabalha sempre em campo aberto e sem peias! Ela sonda sempre, sem cansaços nem fronteiras, o desconhecido. Por isso é que aquele querido Miguel - que atrás ficou citado e ainda está vivo como vemos – afirmou que o ser humano evoluiu demasiado! De tal sorte evoluiu que, agora, já como ser humano, é à sua razão que incumbe, entre o mais, regular as paixões que do corpo sobem à alma! Se o ser humano tivesse só a voz do coração, por causa do medo ou do favor toda a gente tinha fé mas nenhum de nós seria ser humano!
Pode dizer, caro Francisco, dizer que há muitos argumentos de razão, para além dos de coração, para provar a existência de Deus, e dizer ainda que temos atrás de nós, a apoiar-nos, toda uma Bíblia e toda uma tradição e todas essas imponentes catedrais e muito grandes e fervorosas assembleias litúrgicas e mais... Acontece é que, segundo me parece, todos os argumentos racionais para provar a existência de Deus são todos frutos tocados do bicho! E depois, será que toda a Bíblia e a tradição e o restante não poderão simplesmente explicar-se como sendo frutos da voz do coração? Se o deus não fosse temível para ser temido, nem fosse omnipotente e bondoso para nos ajudar, não seríamos indiferentes a esse deus ou deuses, mesmo em termos da voz do coração? E, sendo indiferentes, tê-los-íamos inventado, se acaso é assim?
Numa obra de Cícero, o velho Catão, símbolo das qualidades mais nobres do povo romano, já de oitenta e quatro anos, numa amena conversa com mais duas personagens, confessa que se sente feliz por estar a aproximar-se da morte. E feliz porque está convencido de que continuará a viver, indo ao encontro de amigos e familiares já falecidos. Ele está absolutamente convencido da imortalidade da alma. E até diz que, se estivesse errado nesta sua convicção, ele erraria consciente e voluntariamente, e não quereria que o arrancassem do erro!
E aquele querido Miguel, a quem já nos referimos, sentindo que o optimismo é necessário para vivermos e que a fé é um bom suporte para tal optimismo, proclama sem meias palavras: “Há que ansiar pela imortalidade, por absurda que nos pareça: mais, há que acreditar nela, de uma maneira ou de outra”. Ou seja, ele acha que, em termos racionais, a imortalidade lhe parece absurda, mas entende que deve “ansiar” por ela, isto é, desejá-la e pedi-la ardentemente com o coração! Mas o Miguel acrescenta “mais”! Diz que é mesmo preciso acreditar na imortalidade “de uma maneira ou de outra”, sendo como é evidente, uma dessas maneiras, acreditar nela mesmo sabendo, em termos de razão, que ela é absurda! Isto significará que, neste caso, é a voz da razão que cede à voz do coração! Ora, isto será humano? É claro que, ainda segundo o Miguel, há ainda a outra maneira de acreditar! Mas ele já dissera que, para ele, quando anseia (com o coração) pela imortalidade, esta já e simplesmente lhe parece (com a razão) absurda!...
Por mim, caro Francisco, por mim, simplesmente sondo, simplesmente vou fazendo perguntas. E não me importo de passar o resto da vida assim, sondando e perguntando, pois não me faltam motivos de alegria para viver.
Para o José, um muito terno abraço do João.

quinta-feira, 12 de maio de 2011

17.3

E agora, de uma forma muito especial, eu tenho de dizer algumas (muitas) palavras sobre aquele deus imanente, de que tenho vindo a falar e ainda não disse o que ele é para mim. De uma forma muito especial, dizia, porque sempre que penso ou escrevo sobre o assunto, não posso deixar de o ensopar com uma boa dose de emoção e de ternura! Deus imanente, que afinal é o deus que percorre toda a narrativa, pois que nem as personagens nem o narrador admitem outro, como já vimos. Por isso, eu chamo a atenção de todos os meninos e meninas, a atenção do José e também da Florbela, que está ali ao pé dele, à qual ele dedica o seu livro, sempre a sua “primeira leitora” e a sua “principal crítica”.
A Natureza faz rochas sedimentares, como é o calcário; rochas vulcânicas, como é o granito; também rochas metamórficas, muito mais morosas e complicadas de fazer, como é o mármore, partindo da rocha mais mole que é o calcário. Como sabe ela fazer isto tudo? Quanto tempo demora ela a fazê-las? O ser humano saberia fazê-las, e sobretudo teria a lentíssima e persistentíssima paciência dela para as produzir, tudo isto no caso de a vida humana poder durar tanto tempo?
Corre além ao fundo, no centro de um belo vale, o rio Mondego. Muito a montante, antes de ele chegar a Coimbra, o rio vem deslizando no planalto central, pachorrento, sem nada a incomodar-lhe o andamento. E de supetão – um repente que demorou muitos milhares de anos se não milhões -, levantam-se à sua frente os maciços marginais de Coimbra. Porque aqueles montes ali, meus meninos e meninas, entre Penacova e Coimbra, são muito mais recentes do que o rio! O rio já lá corria, antes de os montes nascerem e irem crescendo. Como é que a Natureza os soube fazer nascer e crescer? E o próprio rio, quando começou a ver aqueles montes a crescerem aos seus pés e a dificultarem-lhe o curso, como é que ele congeminou solução para esta sobrevinda dificuldade? Ele viu que tinha duas soluções: ou contornar os montes que se lhe iam antepondo, ou ir roendo, muito morosa e pacientemente, água mole em pedra dura, as rochas que se lhe levantavam no caminho do seu leito. Os milhares de anos de trabalho que isso lhe durou, depois de escolher a solução que conhecemos!...E depois lá ficaram aquelas belas epigenias, vales profundos e abruptos entalados entre altaneiros montes, para regalo dos nossos olhos…
Passo muitas vezes por estes quintais aqui, e olho quase sempre para as árvores que estão. Elas estão, mas não estão paradas nem mortas. Mesmo no Inverno, não estão mortas, elas dormem. E o que é que sucede quando pressentem a Primavera? Estava ali um abrolho muito delicado numa delas, junto à estrada. Vamos a ver, pensei eu, ver se consigo um dia surpreendê-lo a abrir em delicada flor. Para isso, vou lá passar todos os dias, a fim de tentar descobrir aquela sua intimidade do seu tornar-se flor. Todos os dias lá passo de manhã ou de tarde e nunca vejo nada de diferente…mas de repente, numa fresca manhã, olho para ele…e já não é ele, é ela, é uma “flor” muito “bela” … para oferecer àquela Florbela, que está ali nesta conversa ao pé do seu José. Há, na Natureza, timidez ou vergonha ou receio de nos mostrar estes milagres seus … ou será simplesmente miopia e distracção dos nossos olhos?
Vi há dias além, a trepar um muro, um pequeno vulto escuro, com qualquer coisa na boca. Avancei então mais um tanto e parei, atento, a ver se tal se repetia. E repetiu! Uma gatinha trepou de novo o muro, com mais um gatinho nos dentes! O que terá levado a gatinha a mudar o poiso das suas crias? O que é que leva todas as fêmeas, incluída a humana, a terem um incondicional amor pelos seus filhos? Não é o deus imanente?
Saboreei, na minha boca, uma bela taça de morangos. Depois, eles lá foram descendo pelo tubo digestivo, assim sendo digeridos e depois feitos sangue e alimento para eu viver. Como é que o meu corpo sabe fazer isto tudo tão bem, sem eu ou outrem lhe ensinarmos nada? E depois, aos restos da minha alimentação, restos que não prestam para mim e por isso sabiamente o meu corpo deita fora pela saída de fundo do tubo digestivo, a isso que considero serem dejectos, a Natureza diz-me: “ouve, não deites isso fora! Eu aproveito isso! Eu sei muito bem como isso…a que chamas merda, pode ser aproveitado!
E agora, o que é que nós e a Natureza podemos fazer com esta vida mental que nos possui? Sim, porque é a Natureza que faz connosco, nós somos Natureza, é sempre a Natureza que faz! É sempre o deus imanente, que possui a Natureza e tudo o que é natural – tudo está possesso dele – é sempre esse deus que sabe, que sabe fazer e que faz.
Esta muito jovem mamã que aqui está perto de mim com o seu bebé ao colo saberá se o seu rebentinho conseguirá aprender a falar? Como aprenderá ele a ligar aos sons “m-a-m-ã” o significado que talvez já pressinta e por isso vai conhecendo? Como aprenderá a articular esses sons? Onde arrumará ele aquele significado, para nunca mais o perder? Como aprenderá ele a juntar a esse significado, sempre que o lembrar pela vida fora, emoções e sentimentos geralmente muito agradáveis? As dificuldades que o bebé terá nisto tudo não estarão a assustar a mamã? Ela saberá que o seu bebé está possuído de um deus?
Ali, na quinta, anda um jovem a podar aquelas árvores de fruto, deixando-as depois muito belas, como se fossem esculturas. Ele aprendeu a podá-las, a atrasar-lhes os ramos para elas não treparem muito nem se desequilibrarem, especialmente quando tocar o vento e elas se carregarem de frutos. O jovem aprendeu, ele agora sabe…Mas o que é tudo isto, a não ser o deus imanente que o possui?
O José, com a sua Florbela, andam em transes a congeminar novo romance nas suas mentes, como se ele fosse mais um bebé que aí nelas germinasse e fosse adquirindo formas. Quantos e que passos são precisos para que um livro seja um produto acabado? Quem escolhe o tema, quem investiga, quem junta e depois organiza os materiais, quem os vai pondo em texto, quem cuida da sua forma e do seu conteúdo, quem o dá como acabado – sim, ele agora está muito belo, é assim que vai ficar -, quem sabe fazer e faz mesmo tudo isto, a não ser o deus imanente, a musa inspiradora, o demónio sagrado que possui o José e a Florbela, sempre e em todo o caso esse deus imanente?
É preciso sabermos mais sobre o nosso deus? Esse deus não nos basta? Se não nos basta, não será por causa de tantos materiais simbólicos inúteis com que fomos entulhando e entupindo a funcionalidade da nossa vida mental? Se nos esvaziarmos deste incómodo carrego, ao menos a espaços, não se nos tornarão diferentes as realidades que chegam aos nossos sentidos? E não será também diversa a nossa vida?
Falámos há pouco da timidez ou vergonha ou receio da Natureza em nos mostrar os seus milagres e segredos. E já que entrámos na sala dos segredos da Natureza, e portanto temos de falar mais baixinho, eu vou fazer uma pergunta especialmente aos meninos, embora as meninas também possam ouvir: “Sabem o que são plantas criptogâmicas?”… Já está ali um dedo no ar, prontinho para responder: “Criptogâmico(a) é o ou a que tem os órgãos genitais escondidos. Ou então o vegetal que não produz flor, embora mesmo assim lhe apareçam sementes ou frutos”. “Muito bem, sim senhor”. É que se tudo se escancara de uma golfada ao ser humano, vai-se-lhe todo o encantamento da descoberta; o seu lento e autónomo caminhar para o desconhecido anula-se; e tudo isto é terrível para a educação sobretudo das crianças, porque elas nunca chegarão a exercitar convenientemente o músculo das suas capacidades! Se se expurgar do ser humano esse tal encantamento e esse lento caminhar para a descoberta, esse ser deixa de ser humano. Imaginem então agora se, como o José propõe, a evolução ficasse nas mãos só do ser humano, pondo tudo à mostra num santiamén como já se faz na televisão!
Mas esta longa digressão já nos vai fazendo esquecer o livro do José, que está ali com a sua Florbela, os dois muito pacientemente a gramar tudo isto. Aqui portanto terminamos este assunto, despedindo-nos da Florbela, que tem ocupações urgentes.

Do que o ser humano costuma precisar, pedido pelo instinto e pelo coração, o romance do José não lho dá. Ou dará, mas tão só de forma literariamente imaginária, vazio alimento só para a sua fantasia? Veja-se como termina o romance, com a pequenina frase “Um novo início”, tão pequena para um romance tão grande! Também não precisa do deus frio dos cientistas, talhado a bisturis de laboratórios ou congeminado pelas refinadas elucubrações dos filósofos em gabinetes sombrios, nas academias. Todos estes deuses, se o povo os vier a conhecer – e povo são também muitas vezes esses mesmos cientistas e filósofos – só lhe criarão mais fome!
O que o povo quer é um real deus-mãe onde haja um rosto inundado de doçura e um coração a desentranhar-se em amor e um colo a garantir abrigo; mas também um deus-pai real, cujos braços musculados o protejam dos perigos, e que o ilumine nas encruzilhadas da vida e lhe perdoe os desvarios e - the last but not the least – lhe garanta, no termo desta vida mortal, uma real vida eterna!!
Nunca o povo, nesta vida precária, deixará de ansiar por este deus-mãe-pai real. E quanto mais ele for espoliado pelos exploradores deste mundo, mais ele o exigirá e até o moldará com suas mãos! Será também este o caso do Deus da Bíblia?
O deus de que o povo precisa não é o deus frio e neutro das academias, mas um deus de rosto humano e familiar, caloroso e protector. Aliás, meu caro José, muitos cientistas e filósofos pregam esse deus neutro e frio nas escolas, mas trazem o familiar e caloroso para casa, vivendo e morrendo com ele! E então, neste sentido, e se for este o caso, o Deus da Bíblia ainda presta ao povo bons serviços. Por ele e com ele o povo alimenta profundas convicções, pelo menos de coração, e isso ajuda muito a viver.
Como já foi dito, o José termina o seu volumoso romance de 570 páginas com a apoteose de “ Um novo início”. Mas como, se nem os próprios cientistas que estão metidos na intriga se decidiram definitivamente entre o Big Freeze e o Big Crunch? Ou será aqui que, entre outros lugares da narrativa, o José fez funcionar a sua “proverbial teimosia”? Será que tal teimosia se dá bem com a ciência e o espírito científico, ou ela é só necessária para criar fantasia literária?
Quanto a este “um novo início”, que é o final apoteótico da obra, não terá ele sido ditado por aquela nossa profunda ânsia de imortalidade encapotada, à qual Kant e Einstein, visceralmente religiosos, disseram a razão não poder chegar, mas que lá no fundo, sob a cinza do consciente, ainda arde em grande parte da humanidade? E que leva também, caro José – temos de ser realistas -, também leva a que muitos comprem este teu belo e poderoso produto de mercado, para verem bem se ainda há alguma hipótese de serem salvos de uma definitiva morte?
E depois, a vida e a inteligência nesse novo mundo serão só e sempre artificiais? Ainda poderás falar de ser humano, se o húmus e o esterco e a morte e as emoções e a inteligência e o amor, tudo isso de que temos sido feitos, forem só artefactos de super-computadores, nada disto se levantando da nossa mãe Natureza de onde brotámos e onde vamos tendo os pés? Não deve estar a técnica ao serviço do ser humano, para o não desumanizar? O que seria este teu poderoso e muito belo romance se o expurgássemos de tudo o que o que lhe é natural: já sem um deslumbrante pôr-do-sol sobre o mar; já sem um lago de águas límpidas no Tibete; já sem as mamas de uma Ariana, para sentir e com elas encher as mãos? Veja bem, José, veja e sinta bem …estar a encher as suas mãos feitas só de carne e sangue naturais, com umas mamas puramente virtuais!
Do vazio e do silêncio surge o universo - feito de energia e matéria e vida e inteligência - e do universo se passa ao vazio e ao silêncio. Mas na Bíblia, o Deus é masculino, cria com o seu pensamento e a sua palavra, e do homem é que ele tira a mulher, tudo num tempo que é simplesmente linear, desde o alfa do início até ao omega final, a desembocar numa eternidade sem fim, com Deus. Enquanto que, noutros livros sagrados e culturas orientais, o deus é a Grande Mãe (ou simplesmente a Natureza), que cria tudo com o seu ventre redondo, sendo portanto o homem naturalmente gerado pelo redondo ventre da mulher, tudo num tempo circular, onde o princípio pode vir depois de um fim, e o fim levará sempre a um novo início, num tempo eterno sem princípio nem fim. Contradição entre estas duas tradições culturais, ou simplesmente complementaridade? A tradição bíblica é macho, e fêmea são as outras?
Mas temos de terminar, amigo José. Já vamos almoçar muito tarde. Tu vais almoçar uns bons nacos de cabrito com batatas e verdura – mas tudo artificial, nota bem! – naquele já afamado restaurante cibernético, ali ao dobrar da esquina. Eu irei simplesmente a uma tasca lá perto, onde servem uns deliciosos produtos biológicos. Desejo-te bom apetite, José! Bom apetite e bom proveito. Até breve, José! Muito breve mesmo porque talvez ainda nos encontremos … na tasca, eu a acabar de almoçar…e tu a iniciar! Um novo mas agradável início, e por certo também um muito bom final!
Um grande abraço para ti, com os meus sinceros parabéns, e também uma calorosa saudação para a Florbela.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

TEXTO 17.2


Voltemos agora ao deus imanente, e interpelemos o autor sobre este assunto, pois que temos muitas perguntas para fazer.
Falo para ti, José, falo para ti como primeiro e último responsável por toda a narrativa, por tudo quanto vão dizendo as personagens, e também o narrador. Dizes a certa altura, que o universo se foi prodigiosamente afinando, com muitos e incríveis acasos e golpes de muitas sortes milionárias, se foi afinando para facultar a existência de vida na Terra, sobremaneira a vida humana. “De certo modo”, diz uma personagem, “é como se o universo sempre soubesse que nós vínhamos aí”. É este o princípio antrópico. Mas então, digo agora eu, o universo foi-se afinando até que surgisse a Humanidade, e depois, já com a Humanidade integrada em si, começou (ou continuou) a desafinar-se com cataclismos naturais, com guerras de extermínio de povos, com campos de concentração e mais outros e numerosos horrores? É isso, é? Sim, porque também o mal moral era evitável! Não podia o ser humano ser dotado de liberdade mas optando sempre pelo bem, por aquilo que o promove e o liberta? Pelos vistos, esse deus imanente ainda não conseguiu ser livre assim, pois não?
Falas das extraordinárias e de todo improváveis coincidências “que são absolutamente imprescindíveis para que haja vida na Terra”. Mas tu sabes que os cientistas não excluem a hipótese de haver vida em outros sítios deste imenso universo em expansão…E havendo, nesses sítios se encontrariam as mesmas ou outras incríveis coincidências para que a vida aí fosse possível. E de coincidência em coincidência…elas iam deixando de ser incríveis e quase se banalizariam! Estamos habituados a ver as coisas com os nossos olhinhos da Terra, mas se as imaginarmos numa perspectiva universal, elas assumem outras dimensões. E então, o nosso espanto por essas ocorrências será menor, e as conclusões doutrinárias serão outras!
E porque é que, na Terra, a evolução há-de acabar no ser humano, e não viabilizar um ser mais perfeito? Unamuno já se queixara de o ser humano ter evoluído demasiado. E então, agora, não se poderá dar o caso de aparecer um José que não se queixe mas, ao contrário, se entusiasme com esses estupendos avanços da evolução, a ponto de cá na Terra aparecer uma nova espécie de vida melhor que a raça humana, e pelos humanos criada mas só de pura inteligência artificial, como se propõe no romance?

Agora, sobre o determinismo e ainda a liberdade, sempre na imanência divina e segundo a narrativa: determinismo que tudo domina na evolução; liberdade que não existe para o ser humano.
Repara bem, José, repara bem na minha mão no ar, onde tenho presa entre dois dedos uma pedrinha. Se eu desprender dela os meus dedos, a pedrinha irá fatalmente cair, segundo o determinismo da lei da gravidade? Mas não é a lei uma simples conceptualização que deriva de acontecimentos, que são anteriores e muito mais importantes que a lei? Só a partir de nós e das coisas é que podemos conhecer. Por isso, não há leis nem legisladores, antes de nós e das coisas. Nós é que, depois, formulamos a lei. Aquela pedrinha que se desprende dos meus dedos não tem nenhuma lei atrás dela, já feita por alguém, que a obrigue a cair. O que há é a grandíssima probabilidade de ela seguir o exemplo das anteriores, que, na mesma situação, também caíram. Antes de ela cair, nada mais posso saber. Mas, por conhecer essa grande probabilidade, é que eu posso dizer: sim, ela vai cair. Ora, isto não nos levará a repensar tudo o que dizemos sobre determinismo e sobre quem o determina?
Por outro lado, não será possível conciliar o determinismo macrocósmico ou universal com a liberdade humana, incluindo a liberdade no microcósmico, que é indeterminável? Será que a necessidade não deixa uma fresta aberta à liberdade?
E já que estamos falando de liberdade, porque é que, por vezes, assumimos com frontalidade e dignidade, mesmo contra a nossa reputação social, termos perpetrado uma acção indigna, a não ser porque somos livres e responsáveis? Apesar de nos ser difícil assumir tal atitude, isso não nos vai dar uma profunda alegria? “Não temos liberdade, mas temos um deus”, segundo tu dizes no teu livro. Mas então, que deus é esse, que nem nos dá uma centelha de liberdade? Também ele a não tem, não é? Ou será que, pelo contrário, temos liberdade mas não temos Deus?
Falemos ainda um pouco mais da vida noutros planetas do universo, hipótese que não podemos excluir de todo. E então essa vida, se não for de lá originária, porque é que ela há-de ir ou vir necessariamente da Terra? Porque há-de ser este cantinho do universo, através do ser humano, o único foco de irradiação da inteligência artificial, para todo o universo? Não se poderá pôr a hipótese de outras culturas semelhantes ou até superiores poderem exercer essa função? Porque há-de ser só o ser humano a colonizar o universo?

Segundo a narrativa, Einstein insiste em querer ver informações encriptadas na Bíblia, as quais possam confirmar a bondade das suas conclusões científicas. Mas informações escondidas ou encriptadas também existem em obras muito mais recentes, como por exemplo em “Os Lusíadas”. No canto décimo do poema, se formos a ver muito bem, lá descobriremos a assinatura do autor, com isso dizendo não só que a obra é da sua autoria, como ainda que aquele canto, na epopeia o canto do amor, é o seu filho épico-literário predilecto.
Mas Einstein procurava informações escondidas na Bíblia, porque ela era o “livro dos livros”, por uma grandíssima multidão seguido, um livro muito antigo e sagrado. Sagrado porquê? Sagrado porque, em toda a longa história do Cristianismo, se pensou que todos aqueles pequenos livros componentes da Bíblia tinham sido escritos não só por autores humanos, mas também por Deus. Eram livros inspirados, no sentido de que também foram escritos por Deus, um deus real, e portanto neles havia inspiração mesmo divina. Os Lusíadas também são um livro inspirado, inspirado por musas ao autor, mas aqui trata-se de uma mera inspiração poética. É certo que, como podemos ver no início da narrativa do José, a personagem Einstein não aceitava a existência do Deus Transcendente, o Deus judaico-cristão. Ainda assim, ele entendia que, por ser um livro muito antigo e sagrado e conhecido quase em todo o planeta, ele esconderia dados muito importantes para a sua investigação científica.
A isto podemos objectar que, se ele queria encontrar dados relevantes para si nos livros antigos e sagrados, então podia consultar outros livros sagrados, os livros hindus e do Tao, por exemplo, que até serão mais antigos do que a Bíblia. Mas consultou a Bíblia judaico-cristã e não qualquer destes ou outros livros sagrados de outras religiões, porque Einstein era judeu, ela é muito mais conhecida, e outros desses livros não lhe terão sido acessíveis. Aliás, se compararmos bem a Bíblia judaica com todos os outros livros sagrados das religiões orientais, descobrimos que estes, na sua doutrina de fundo, talvez até conflituem com ela, em alguns aspectos. Podemos ver isso adiante, se quisermos.
Mas voltemos à Bíblia, e àquilo que Einstein considerava estar encriptado nela e que era importante para confirmar a sua investigação. Ele olhou, por exemplo, de forma insistente, para aqueles “seis dias” da criação operada por Deus. De facto, no Génesis, o autor sagrado, que não era nenhum cientista, conta que Deus criou o mundo em seis dias, dias terrestres, tendo descansado no último dia da semana. E o curioso é que Einstein viu, naqueles seis dias terrestres da criação, seis dias de tempo cósmico, de acordo com a sua teoria da relatividade, nos quais dias, segundo ele, o universo se foi formando e organizando por evolução, dias portanto longuíssimos, cada um com milhões de anos. Estava então encriptado no texto sagrado este segundo sentido, agora científico e cósmico, que se pode atribuir às palavras “seis dias”? Ou é mera coincidência, considerando, como é evidente, que as contas do cientista estão certas, coisa que me parece ainda ninguém ter provado?
Mas o que aqui, sobre este assunto, se deve acrescentar é que o autor sagrado, quando de uma forma literária se pôs a contar o acto da criação, o que ele pretendeu primariamente foi comunicar aos outros a sua fé, ou seja, que o Deus Transcendente, o deus do seu povo, tinha criado o universo, e que o universo era bom. E então, se o Deus tinha criado de uma forma bela um universo bom, ele, como autor literário, teria de inventar também uma história bela, mesmo em termos de tempo gasto nesse acto criador. Ora, a unidade de tempo mais perfeita que ele encontrou, unidade perfeita e por isso também boa e bela e de todos bem conhecida foi precisamente a semana, feita de seis dias para trabalhar, com mais um para descansar. A intenção primária e talvez única do autor foi comunicar a sua fé, sendo assim o tempo que empregou mera roupagem literária, naturalmente portanto o tempo do senso comum, o tempo terrestre e mais nenhum outro.
O cientista também notou profunda semelhança entre o inicial Faça-se luz genesíaco do acto criador, com a suposta explosão de luz do Big Bang, com que ele pensava ter-se iniciado o universo. Simples coincidência, ou também aqui um suposto sentido encriptado? Pensemos entretanto um pouco. Para que o inteligente autor literário da narrativa genesíaca pudesse comunicar aos outros que o seu Deus tinha criado isto e aquilo, - tudo o que afinal os seus olhos podiam contemplar – era preciso que essas coisas, por si apresentadas no seu texto, tivessem saído da escuridão da inexistência para a luz da existência! E também precisamos de luz para que as coisas possam avultar aos nossos olhos, e assim podermos constatar que elas existem, não é? Então, logicamente, a primeira coisa que ele teria de mencionar no acto criador era precisamente a luz! Só na luz as coisas criadas ou a criar nos podem ou poderão avultar, e portanto só nela as poderemos conhecer. Luz para conhecer o que está fora de nós, e uma luz outra para conhecer o que está dentro.

Do manuscrito de Einstein, cujo título é também o do romance, só nos é desvendada a sua primeira página, aliás dactilografada. O José não nos desvenda o resto, talvez para o aproveitar para mais uma ou duas bombas literárias no mercado! Então, depois da muito difícil decifração desse pedacinho - operada pelo criptanalista Tomás, ajudado pela sua namoradinha Ariana e ainda pelo seu pai moribundo e por Luís Rocha - resultou o seguinte:
A Formula de Deus
Subtil é o Senhor, mas malicioso ele não é.
Vejam o sinal no Génesis: “Faça-se luz”