sábado, 5 de fevereiro de 2011

TEXTO 9

Olá, meninas e meninos!
Estou agora na chamada Rua da Fé, tendo atrás de mim o lar onde resido. Que coisa estranha uma rua com este nome, num espaço que é simplesmente civil! E note-se que tal inscrição, bem como quase todas as outras da vila, foram muito recentemente colocadas e embebidas em pequenos pedestais ou nas paredes das ruas ou largos a que respeitam.
Ainda hei-de explicar por que se chamará assim, esta Rua da Fé. É uma rua antiga e muito estreita, mais simplesmente caminho que rua, não dando sequer para deixar passar um automóvel. Do lado esquerdo de quem sobe, para desembocar no adro, há um denso renque de loureiros antigos, e do direito um muro baixo que se ver ser antiquíssimo.
Mas a estranheza não pára por aqui, como já acima se anunciou! Porque a Rua da Fé, pelo lado de baixo, entronca na Rua de Nossa Senhora do Carmo, a qual por sua vez conduz à Rua da Igreja, que é a maior rua de todas as que há na vila, e depois esta rua, um pouca acima do templo, tem junto a si a capelinha do Santo Cristo, com que se inicia para Poente a rua do mesmo nome, a qual por sua vez é continuada na mesma direcção pela Rua da Cruz de Santo António, que vai desaguar no Largo de S. Tomé, onde se pode ver ali junto a capelinha de S. Tiago ou S. Tomé. Falta ainda referir que o nome da Rua do Santo Cristo está inscrito no fim da rua num pedestal antigo, este encimado por uma caixa de alminhas com três nichos em azulejo, havendo em dois a representação do Cristo crucificado e tendo em fundo dois anjos a tirar almas do Purgatório em chamas, e no terceiro a representação do mesmo Cristo crucificado, mas tendo em fundo somente o monte do Calvário.
E que dizer de um “pai” com seu menino, no meio de uma rotunda, e de uma outra figura conhecida com uma pesada chave na mão, no largo de um casal? Não era preferível que estas três sagradas figuras estivessem recolhidas na sagrada mornidão da igreja?
E há um sem número de alminhas antigas e recentes, espalhadas por todo o território da freguesia, e nichos nas esquinas das moradias e painéis de azulejos nas frontarias, sempre com motivações religiosas.
Tudo o que até aqui se deixa referido é espaço simbólico criado pelos humanos, no espaço físico onde residem. Mas simbólico espaço é também, e do mais fino, aquele que de quando em vez se patenteia em pitorescos azulejos no muro da frente ou na frontaria das casas, como aquele em que se diz “Se tens inveja do meu viver, trabalha, malandro”, ou aquele outro onde, por debaixo da imagem de um cão metido numa gaiola, se pode ler “O cão está preso, cuidado com o dono”. Com ele o transeunte fica avisado, de uma forma incisiva mas também bem humorada, de como os dentes do proprietário são ainda mais aguçados e venenosos que os do seu animal!
É fácil delimitar, de forma mais ou menos precisa, o espaço físico ou território do antigo burgo que deu origem à actual e risonha vila de Carapinheira. O primeiro marco, a Sul, é o precioso cruzeiro do Alhastro, nome antiquíssimo este de origem romana, posteriormente cristianizado com o cruzeiro. Neste primeiro marco se inclui a antiquíssima capela de Santo Amaro, que está aí a dois passos. Aí começa a linha recta que é a Rua do Alhastro, seguindo para Norte até ao alto da Boleta, onde se encontra um outro marco que é a capela do Espírito Santo. Daí se parte para Poente, quase sempre em linha recta e pela crista da colina, mais ou menos pelas estradas ainda hoje existentes, até ao já referido Largo de S. Tomé, junto do qual avulta a já também citada capela do mesmo nome. Parte-se daí pelas ruas da Cruz de Santo António e do Santo Cristo, até à capela do mesmo nome, linha muito antiga que revela que o casario foi alastrando por aí, para cima e para baixo. O centro de tudo foram sempre a igreja e o cemitério, a rua principal sempre foi a Rua da Igreja, que vem do Alhastro até ao alto da colina; e o burgo foi alastrando em anfiteatro voltado para o sol e para o Sul.
As povoações para Nascente da rua do Alhastro serão mais recentes, e aquela Rua da Fé, de que ao princípio falámos, era o carreiro ou o caminho estreito por onde as pessoas do Lugar do Cabeço e também já de outros lugares a Nascente seguiam para irem e virem da igreja, encurtando distâncias. Mas tudo isto são meras impressões que dependem só dos olhos e dos ouvidos, sem mais investigações. E bem sabemos como os nossos sentidos, tendo à cabeça o ver e o ouvir, nos pregam perigosas rasteiras!
Muito provável é que não haja sequer uma menina ou menino que tenha lido este texto do princípio até ao fim, mesmo que tenha sido só em diagonal ou pelo rabo do olho. O mais certo é que estejam todos a dormir, e até muitos a ressonar!

Sem comentários:

Enviar um comentário