sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

TEXTO 11.2

II
Só pode ser aqui a casa da moleirinha. Tento bater à porta da casa, mas não há casa nem porta, e por isso só posso bater ao vento! Há, sim, lá em baixo, perto da ribeira, um casebre de tábuas e coberto de latas. Aqui em cima junto à estrada, só há um pinheiro alto e antigo, sentinela vigilante e perigosamente armado de suas pinhas, a fazer cair e estrondear na tola dos intrusos. Clamando alto e por várias vezes, vou ensaiando uns passinhos pequenos e receosos...até que, de uma golfada, vindos lá de baixo como tiros, vejo e ouço quatro rafeiros a rodear as minhas canelas, ladrando e depois também farejando! É claro que logo fico hirto, no meio daquela salsada! E vou deixando ladrar e farejar, vou-lhes falando de mansinho como todos os bichos gostam incluídos os humanos, até vou recuando um tanto como também faziam os romanos quando às suas canelas lhes queriam vir os cartagineses...E quando o instinto de ladrar e farejar se saciou aos bichinhos e se fez silêncio, uma voz lá do fundo grita: “Quem está aí”? “É gente de bem, senhora!”, respondi eu. “Não sabia bater à porta, lá em cima”? “Eu bati à porta e até toquei à campainha, mas elas estão dormindo e não dão de si!...”
Vou agora descendo sem receios, mas ainda com cuidado. “Bom dia, minha senhora, eu chamo-me tal e tal, estou a residir numa casa assim e assim, e sou muito amigo” – isto é que é importante – “muito amigo de uma outra senhora que trabalha nessa casa e é aqui sua vizinha”. “Ah, sim, conheço muito bem! Olhe, o pai dela esteve há pouco ali em cima na estrada a desencravar um carro que ia caindo por esta ribanceira abaixo”.
E conversámos muito amigavelmente um bocado. Ela foi dizendo que vivia sozinha, e assim é que gostava de estar. É certo que há muitas pessoas que não apreciam a solidão, mas nisso ela é bem diferente delas. Dizendo também que nem o casebre nem o moinho lhe pertenciam, e que este último já estava parado há tempos, carecendo de uma cuidada reparação. Dizendo ainda que, quando o senhorio resolver fazer obras e reparações, ela terá de sair dali. Talvez que os novos arrendatários sejam ainda seus parentes, e por isso ela regressará de quando em vez para matar saudades.
Ó minha querida velhinha moleirinha de alma alva, mais branca que a farinha que saía do moinho que agora está ali encravado e já não mói, tu que assiduamente frequentas e sondas as escrituras sagradas e te deleitas com elas, estou vendo que conheces muito bem o sentido daquele mito antigo em que Adão e Eva puxaram da árvore da ciência um fruto delicioso e o comeram. Delicioso, sim, mas também tremendo, não só para os dois mas ainda para todos os vindouros humanos. Sim, pois que, se um ser vivo não comer dessa fruta, não poderá ser humano! Sabes muito bem, moleirinha querida, sabes bem que não foi Deus quem expulsou aqueles dois primeiros humanos, do paraíso terrestre. O que na realidade aconteceu foi que os dois, olhando-se e sentindo-se diferentes de todos os outros seres desse paraíso, de sua vontade livre se decidiram a sair de lá!
Esta macieira aqui ou aquela cabrinha além podem ver-se e sentir-se a si próprias, como nós, e tomar decisões? Não podem, pois não? A cabrinha e a macieira, a Natureza deu-no-las completamente programadas e feitas, não podendo elas sair daquele aperto fatal em que estão contidas! Mas nós, querida moleirinha, nós somos bem diferentes, não é? É certo que também nós estamos contidos nessa fatal necessidade, mas isso é em grau bem menor, pelo que nós podemos ver-nos a nós próprios e decidir! Não nascemos feitos, da Natureza; nós é que temos de nos ir fazendo! Quando pensamos e decidimos e realizamos algo e depois nos sentimos disso responsáveis, nós estamos a criar-nos e a continuar a evolução! Continuar para melhor ou para pior! Um Banco Alimentar contra a Fome e os campos de concentração nazis não são bem a mesma coisa, pois não? E mesmo que os tais míticos Adão e Eva tivessem continuado ao pé da macieira e nós ao pé da cabrinha, depois de a todos nos acontecer esta interior iluminação que nos faz bichos humanos, nós já não fazemos parte daquele paraíso terrestre de uma felicidade neutra e meramente vegetal ou animal! Nós é que temos de ir criando a nossa felicidade e o nosso paraíso!
Sentiram-se então diferentes Adão e Eva, e por isso separados de todos os outros seres. Mas também diferentes e separados um do outro, porque o poço da subjectividade de Adão é um, e o de Eva é outro! Veja isto bem, querida menina velhinha de olhos azuis, veja porque é aqui que nós queremos chegar. Ser diferente e estar separado são, de alguma forma, estar em solidão. Constitutivamente, o ser humano é um ser de solidão! Mas não só, minha querida velhinha de olhos vivos! Não só porque, por igual, também constitutivamente, o ser humano é um ser de pontes e de comunhão! Precisamente para dar sentido e preencher aquela solidão!
Se o ser humano mergulha e se afunda no poço da sua subjectividade, sobretudo em seus pensamentos e emoções nada saudáveis e não cuidando de de lá sair e fazer pontes, então estará cavando a sua destruição! Mas se, deliciando-se com a solidão da sua consciência vazia e limpa de tudo o que é negativo, ele as abre ao virginal agora que é sempre uma nova criação, então o ser humano é feliz!
Por isso, esta querida menina, que tem tido toda a paciência do mundo para continuar comigo, está certa quando diz que gosta de viver sozinha. Estar só, na verdade, pode ser das coisas mais deliciosas do mundo! E agora, minha menina velhinha moleirinha de olhos azuis e vivos, vamos ali à ribeira sentir a múrmura água a correr, e fiquemos com ela.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

TEXTO 11.1

Olá, meninas e meninos!
Introduzimos aqui, para gozo(?!) de vossos olhos e ouvidos, uma “Sonata em dois tempos”. Será hoje o desempenho do primeiro tempo, e o segundo ficará para a próxima semana.
I
Vou por uma nesga aberta entre o denso arvoredo, e a floresta alonga-se até perder de vista, para os dois lados da estrada. Nesta tira de asfalto por onde caminho, a meio da manhã, não há ninguém que eu encontre, a pé ou de bicicleta, e poucos são também os veículos motorizados. O sol está firme e já revelando a nitidez das árvores, mas lá ao fundo, no vale, ainda há um grande banco de nevoeiro. Passa-se agora por um túnel que a recente auto-estrada aqui abriu, também ela com parco movimento porque neste país não há dinheiro nem gente, sobretudo só raramente aparecendo desses deliciosos bichinhos que dão pelo nome de crianças.
Vou com a ideia numa azenha ou moinho de água, que dizem ainda estar em funcionamento para estes lados. O nevoeiro vai levantando, já se vê melhor ao longe, assim se desvendando aos poucos a pura realidade das coisas, para deliciar os sentidos. Vai-se abrindo um vale todo cheio de verdura, todo agricultado, pois que os humanos têm imposto respeito ao arvoredo circundante no sentido de que este não avance, assim não engolindo este pequeno paraíso.
Nítidas já aparecem as casas, à beira da estrada, todas elas com pequenos e cuidados jardins. Lá ao fundo, correndo pelo meio do vale, pela certa que haverá veia de água a alimentar este esplêndido verdor. Além disso, há também aquela história da azenha que existe para estes lados, a qual de muita linfa corrente precisa para poder funcionar. E cá está ela, a ribeira, nesta curva da estrada. Será ela a ribeira que há tempos encontrámos, mais a montante, onde surpreendemos os pezinhos de uma menina lavadeira? Por certo que sim. Nessa altura, porém, para nós, a ribeira não ia mas estava. Mas bem sabemos que ela, para estar, também tem de ir, e por isso aqui está ela, a mesma ribeira, para gozo dos nossos olhos e ouvidos.
E eis que, de outra estrada aqui entroncando, se vê a aproximar um menino, já bem passante dos setenta, que empurra o seu carrinho de mão a transbordar de couves e de outras verduras. “Bom dia, senhor! Já traz aí o carrinho cheio de coisas boas para a família e para o gado! Foi você quem apanhou ou foi a sua esposa”? “Eu é que apanhei tudo! Já sou viúvo há vários anos e agora arranjei uma companheira que é muito trabalhadora e me trata muito bem! Olhe, hoje ela foi dar o dia para aquela terra além, e só vem à noite”. “Belos tomates esses, meu amigo, que vêm em cima das couves! São carnudos e sumarentos, e também devem ser saborosos”! “Pois são! Em salada a acompanhar um peixinho e umas batatas são de trás da orelha”! “Mas o meu amigo sabe muito bem, por experiência própria, que há uma outra qualidade de tomates! Também esses, meu amigo, também esses são de boa qualidade e ainda estão ao serviço”? “Claro! Olhe, ainda hoje de manhã eles estiveram ao serviço e funcionaram muito bem”! “Mas de manhã, meu amigo, logo antes de um dia de trabalho”? “Não há problemas! Quando apetece é que é”! Demos os dois saborosas gargalhadas, enquanto eu ia pensando: querido amigo Felisberto, porque é que, sempre que te referes à tua companheira, os teus olhos se põem a faiscar de alegria tão intensamente? Não será porque, debaixo dessas faíscas, há uma profunda felicidade a dois?
“Diga-me só mais uma coisa, amigo Felisberto. Onde é o moinho de água que há por aqui perto”? “Olhe, é já além, à direita, onde há um pinheiro alto. Está a ver o pinheiro”? “Sim senhor, muito obrigado, meu amigo, gostei muito de o conhecer e de conversar consigo”! “Também eu gostei! Adeus”.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

ADENDA DOIS AO TEXTO 10

Olá! Não sei se há mais verdades … mas sei que há mais um texto! Porque, além do texto escrito e oral e simplesmente humano sem palavras, e do texto meramente animal e vegetal e mineral … há ainda … (como é que me pude esquecer dele!), há ainda, fora e dentro de nós, o texto … o texto do vazio e do silêncio!... Texto fundamental e fundante é ele, porque é de lá que em cada agora estamos nós surgindo e também o universo … e para lá tudo há-de voltar!

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

ADENDA AO TEXTO 10

Olá! Um texto só poderá ser belo e bom, para mim, quando me demoro na sua fruição, fruição da beleza e da bondade do seu corpo significante, e sobretudo da bondade e da beleza da sua alma significada! Podem-me acontecer picos de prazer mais intenso nessa demorada fruição, mas prazer sempre para elevar a alma, satisfazendo também sempre o corpo. E se o texto é belo e bom, para mim, também o texto, a mim, me faz bom e belo! Haverá outras verdades?

sábado, 12 de fevereiro de 2011

TEXTO 10

Olá!
Nós que temos a responsabilidade por este blog, nós os quatro sabemos que tem havido vários meninos e meninas a visitá-lo, e a olhar e até a ler os textos que aqui vão sendo oferecidos. Mas também sei que há uma menina que, olhando os textos, não sabe bem como lhes há-de pegar!
Falo então agora, de uma forma especial, para essa querida menina. Olhe, minha menina, um texto é como uma malinha: ele guarda lá coisas dentro, mas também é a malinha! Já leu algum texto todo, e percebeu alguma coisa? Ficou com umas ideias vagas, mas não desceu ao pormenor? Se o ler outra vez mais, e outra vez ainda com muita atenção e atendendo a pormenores, não colherá mais ideias? Falámos até aqui de ideias, que são o recheio do texto. Mas um texto não é só ideias ou recheio, pois também é a malinha! Por ele também ser a malinha, é preciso olhar bem para as palavras e frases, para o ritmo e para as eufonias e significantes cacofonias e outros efeitos literários e poéticos, tudo produzido pelas palavras e frases, porque tudo isso nele está de forma intencional! A menina sabia, por exemplo, que os escritores latinos não começavam nem acabavam a frase de qualquer maneira, porque toda ela devia obedecer a determinados ritmos?
Tal como o ser humano, assim também os textos se constituem de alma (que são as ideias) e de corpo ( que é a sua materialidade significante ). Espelhamo-nos nos textos que fazemos e lemos, mas também eles se espelham em nós. Tal como a nossa, também a alma deles paira no ar, é espiritual, mas nem por isso ela anda à solta! Ambas estão presas ao aperto da matéria, que está na terra e é o seu suporte. Tanto os textos como nós devemos ressumar de verdade e de beleza, para que assim eles e nós sejamos bons!
Não alimento veleidades de ser artista escrivão. Longe disso! Mas lá que, quando escrevo, para além de algumas ideias que lanço, também me preocupo um tanto com a forma, ou seja, com as frases e as palavras, isso é verdade! Como também gosto de ver um belo corpo humano, sobretudo se ele florir em alma bela, que é para isso que ele deve servir!
Por tudo isto – e não me esqueço de que estou a falar especialmente com aquela menina -, quando escrevemos ou lemos um texto, devemos pegar nele com cuidado e saber bem o que temos em mãos.
Mas está ali um menino, com quem já conversei várias vezes, que, tal como eu, também gosta de ler ensaios, que são textos escritos mais longos e também mais aprofundados sobre determinado assunto. Quando lemos um ensaio, já temos habitualmente algumas ideias sobre tal assunto, e agora o que com ele queremos é alargá-las e aprofundá-las. Por várias razões, já me aconteceu que, ao começar a ler um determinado ensaio, eu desisti logo ali no primeiro capítulo. Passados porém vários meses, eu pego de novo nesse livro e leio-o todo até ao fim, com subido prazer. E depois disso, já o li de novo mais duas vezes, nele encontrando sempre novas ideias, e portanto sempre também novos prazeres. É claro que quando lemos uma tradução, a obra já perde, pelo menos, alguma da sua beleza formal. Bem se conhece aquele aforismo italiano, segundo o qual, “tradutore, traditore!”, ou seja, “o tradutor é sempre um traidor”! Sempre coisas novas, em cada uma das novas leituras. Tal como quando falamos e convivemos com pessoa de alma nobre, nela encontrando sempre deliciosas surpresas.
Quem conversa sobre texto escrito, também pode conversar sobre texto oral. Quando falamos (muito) alto, e a situação isso não exige, nós estamos de algum modo a consentir que as paixões do corpo nos subam descontroladamente à alma, para além daquelas que nesta podem nascer e nela e no corpo se agigantam, com tudo isso agredindo e conspurcando os ouvidos e a alma dos outros, o ambiente onde vivemos, e mesmo os primordiais vazio e silêncio de onde vimos e onde estamos. E quando a verborreia se junta a estes destemperos, então a nossa boca poderá ser como cloaca a desaguar no ambiente, não só inutilidades como até imundícies. Não há pior diarreia que a diarreia mental, porque aquela – a do corpo – incomoda só um(a), mas esta incomoda muita gente, para além de dever incomodar a sua dona ou dono, porque a alma deles é um árido deserto sem vida. Mas ao contrário, que delicioso é um texto oral a meia voz, todo feito de palavras sábias e contidas, ou também de palavras com segundos sentidos ou até só de meias palavras, tudo ressumando de ironia para fazer rir sem ferir! O verdadeiro texto oral não pode ser feito de barulho. A beleza da alma só nos passa para ele e se transmite, se o som com que é produzido for moderado ou baixinho! E então, nesses sons, assim finamente modulados, nós sentiremos ou ao menos pressentiremos as palpitações da alma!
Mas o texto mais sublime – desta é que os meninos e as meninas não estavam à espera! – o texto, de todos o mais sublime, é o texto do silêncio: um sorriso, o brilho do olhar, as mãos e os dedos...o diálogo dos corpos...diálogo este, o dos corpos, que, para ter pleno sentido, tem de incluir o das almas!...É um diálogo sem palavras, pois que, se as palavras vierem, elas não só são só barulho, como também podem estragar o resto! Talvez até que as palavras, se bem que aos humanos quase sempre necessárias, elas sejam sempre empecilhos para voarmos mais alto! Mas isso ficará para outra ocasião.
Todo o texto humano, meus amigos, qualquer que seja ele, deve sempre consubstanciar-se nesses dois elementos: ter corpo e ter alma. Tal como nós, que somos alma e corpo. E assim como cuidamos de nós, ou devemos cuidar, assim também devemos cuidar dos textos que formos produzindo, e dos que vamos ouvindo ou lendo.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

TEXTO 9

Olá, meninas e meninos!
Estou agora na chamada Rua da Fé, tendo atrás de mim o lar onde resido. Que coisa estranha uma rua com este nome, num espaço que é simplesmente civil! E note-se que tal inscrição, bem como quase todas as outras da vila, foram muito recentemente colocadas e embebidas em pequenos pedestais ou nas paredes das ruas ou largos a que respeitam.
Ainda hei-de explicar por que se chamará assim, esta Rua da Fé. É uma rua antiga e muito estreita, mais simplesmente caminho que rua, não dando sequer para deixar passar um automóvel. Do lado esquerdo de quem sobe, para desembocar no adro, há um denso renque de loureiros antigos, e do direito um muro baixo que se ver ser antiquíssimo.
Mas a estranheza não pára por aqui, como já acima se anunciou! Porque a Rua da Fé, pelo lado de baixo, entronca na Rua de Nossa Senhora do Carmo, a qual por sua vez conduz à Rua da Igreja, que é a maior rua de todas as que há na vila, e depois esta rua, um pouca acima do templo, tem junto a si a capelinha do Santo Cristo, com que se inicia para Poente a rua do mesmo nome, a qual por sua vez é continuada na mesma direcção pela Rua da Cruz de Santo António, que vai desaguar no Largo de S. Tomé, onde se pode ver ali junto a capelinha de S. Tiago ou S. Tomé. Falta ainda referir que o nome da Rua do Santo Cristo está inscrito no fim da rua num pedestal antigo, este encimado por uma caixa de alminhas com três nichos em azulejo, havendo em dois a representação do Cristo crucificado e tendo em fundo dois anjos a tirar almas do Purgatório em chamas, e no terceiro a representação do mesmo Cristo crucificado, mas tendo em fundo somente o monte do Calvário.
E que dizer de um “pai” com seu menino, no meio de uma rotunda, e de uma outra figura conhecida com uma pesada chave na mão, no largo de um casal? Não era preferível que estas três sagradas figuras estivessem recolhidas na sagrada mornidão da igreja?
E há um sem número de alminhas antigas e recentes, espalhadas por todo o território da freguesia, e nichos nas esquinas das moradias e painéis de azulejos nas frontarias, sempre com motivações religiosas.
Tudo o que até aqui se deixa referido é espaço simbólico criado pelos humanos, no espaço físico onde residem. Mas simbólico espaço é também, e do mais fino, aquele que de quando em vez se patenteia em pitorescos azulejos no muro da frente ou na frontaria das casas, como aquele em que se diz “Se tens inveja do meu viver, trabalha, malandro”, ou aquele outro onde, por debaixo da imagem de um cão metido numa gaiola, se pode ler “O cão está preso, cuidado com o dono”. Com ele o transeunte fica avisado, de uma forma incisiva mas também bem humorada, de como os dentes do proprietário são ainda mais aguçados e venenosos que os do seu animal!
É fácil delimitar, de forma mais ou menos precisa, o espaço físico ou território do antigo burgo que deu origem à actual e risonha vila de Carapinheira. O primeiro marco, a Sul, é o precioso cruzeiro do Alhastro, nome antiquíssimo este de origem romana, posteriormente cristianizado com o cruzeiro. Neste primeiro marco se inclui a antiquíssima capela de Santo Amaro, que está aí a dois passos. Aí começa a linha recta que é a Rua do Alhastro, seguindo para Norte até ao alto da Boleta, onde se encontra um outro marco que é a capela do Espírito Santo. Daí se parte para Poente, quase sempre em linha recta e pela crista da colina, mais ou menos pelas estradas ainda hoje existentes, até ao já referido Largo de S. Tomé, junto do qual avulta a já também citada capela do mesmo nome. Parte-se daí pelas ruas da Cruz de Santo António e do Santo Cristo, até à capela do mesmo nome, linha muito antiga que revela que o casario foi alastrando por aí, para cima e para baixo. O centro de tudo foram sempre a igreja e o cemitério, a rua principal sempre foi a Rua da Igreja, que vem do Alhastro até ao alto da colina; e o burgo foi alastrando em anfiteatro voltado para o sol e para o Sul.
As povoações para Nascente da rua do Alhastro serão mais recentes, e aquela Rua da Fé, de que ao princípio falámos, era o carreiro ou o caminho estreito por onde as pessoas do Lugar do Cabeço e também já de outros lugares a Nascente seguiam para irem e virem da igreja, encurtando distâncias. Mas tudo isto são meras impressões que dependem só dos olhos e dos ouvidos, sem mais investigações. E bem sabemos como os nossos sentidos, tendo à cabeça o ver e o ouvir, nos pregam perigosas rasteiras!
Muito provável é que não haja sequer uma menina ou menino que tenha lido este texto do princípio até ao fim, mesmo que tenha sido só em diagonal ou pelo rabo do olho. O mais certo é que estejam todos a dormir, e até muitos a ressonar!