terça-feira, 31 de maio de 2016

400 - Valores (continuação)

3 – Sim, de facto, quaisquer valores (sobremaneira os valores objectivos e universais) só são mesmo reais e vivos quando eles são cultivados ou violados pela (e na) nossa viva acção humana, e os efeitos do seu cumprimento ou violação aparecem no nosso mundo sensível.
No vertente caso da segunda guerra mundial, os valores tornam-se reais e vivos em Churchil e no seu povo, que deu “sangue, trabalho, lágrimas e suor”, e também muitas vítimas em defesa deles. Estão vivos e são reais no milhão e meio de edifícios destruídos porque achamos que isso é, para além do mais, um enorme atentado ao nosso meio-ambiente, que devemos preservar. Vivos estão e bem reais na carta do oficial-militar à sua esposa, vivos sobretudo na vergonha que ele sente de ser alemão. Vivos também e bem reais na profunda dor daquele pastor protestante alemão, sobretudo por ter testemunhado a chegada de carregamentos de sapatinhos de crianças. Vivos e bem reais porque, impunemente, os sapatinhos foram para sempre esvaziados dos pezinhos vivos que os costumavam calçar.
 De algum modo, os valores são reais e até estão vivos nos mortos, nos cerca de 60 milhões de mortos, na medida em que eles são as vítimas dos violadores dos valores humanos, o último e execrando efeito da sua acção. Até, por ironia, os valores estão vivos na pessoa do Fuhrer e dos seus sequazes, enquanto seus violadores e pretensos exterminadores. Por ironia, sim, porque, apesar dos maus tratos que lhes temos infligido - aos valores, evidentemente -, estes continuam vivos depois deles.

4 - Mas a saga não termina aqui. Será que nós e estes nossos valores, que proclamam a nossa identidade de seres iluminados pela razão, amantes da vida em todos e tolerantes, não haveremos de sobreviver a todos os terrorismos que grassam hoje pelo nosso vasto mundo como a felga pelos campos? Tamanha é a singularidade humana, que, se se deixa de todo corromper, redundará no pior género de vida no planeta.



Nota: O conteúdo das citações históricas encontra-se em Martin Gilbert, História do Século XX, vol.4, em edição do Expresso.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

400 - Valores

1 – Olá, amigas e amigos! Há valores? Valores mesmo reais que fundem uma verdadeira moralidade objectiva entre os humanos? A dignidade do ser humano e das nações? A justiça, a fraternidade entre os homens, a liberdade, o amor? A preservação do planeta-nossa-casa-comum? Enfim, haverá mesmo o bem e o mal?
Na segunda grande guerra mundial, que assolou toda a Europa e grande parte do mundo, morreram 59 milhões de pessoas, de entre as quais cerca de 6 milhões de judeus, e foram destruídos milhão e meio de edifícios. Hitler, fuhrer da Alemanha, essa sinistra figura, depois de atacar e ocupar cruelmente a Polónia e declarar que aniquilaria todos os judeus, foi continuando a fazer as suas hediondas conquistas e abrindo os tenebrosos campos de concentração e de extermínio.
Por seu lado, Churchil diz ao seu povo: “Não tenho nada para oferecer, além de sangue, trabalho, lágrimas e suor”. E no parlamento declara que a sua política vai ser: “ fazer a guerra contra a tirania monstruosa, nunca ultrapassada no catálogo negro e lamentável dos crimes humanos”.
Quase logo ao princípio da guerra mas já com a Polónia ocupada pelos nazis, um oficial alemão, tremendamente chocado com o que vê, escreve à sua mulher e termina assim a sua carta: “Tenho vergonha de ser alemão”.
Mas os horrores continuam e, entre eles, abriam-se mais campos de concentração, de trabalho forçado e de extermínio. Começam então a sair de Auschwitz vagões carregados de roupas e outros pertences dos que aí tinham sido assassinados. Por coincidência, no local de destino dessa roupa, está um pastor protestante alemão, também ele detido, que pôde testemunhar dois desses desembarques. “Ficámos abalados até ao mais fundo das nossas almas quando chegaram os primeiros transportes de calçado de criança: nós, homens habituados ao sofrimento e ao choque, tivemos de fazer um grande esforço para conter as lágrimas”. Mas um tempo depois, mais milhares de sapatos de criança chegavam: “para nós”, disse o mesmo pastor, “isso foi a coisa mais horrível, mais dolorosa, a pior coisa que nos aconteceu”.
Outra vez a pergunta: haverá mesmo valores que fundem a nossa maneira humana de conduzir a vida? Onde se poderá evidenciar a verdadeira realidade desses valores que se podem defender e violar?

2 – Se consultarmos um perito em Ética, mais explicitamente em valores morais e políticos, ele dirá que há valores relativos, mas também valores objectivos. Os primeiros são aceitos e seguidos só por determinados grupos ou sociedades. Os segundos são valores objectivos, que também podemos chamar universais por serem aceitos e seguidos universalmente, e portanto não serem exclusivos de alguns grupos ou sociedades. Tais valores são defendidos mesmo por quem, em determinadas circunstâncias, os tenha de cumprir contra o seu interesse.
Desses valores objectivos ou universais, são exemplos o valor da tolerância, os valores fundamentais da vida humana e da justiça. De facto, em nenhuma sociedade se aceitam o homicídio e o roubo cometidos de forma indiscriminada. E quanto à tolerância, ela é tão universal que nós até podemos (e devemos) ser intolerantes para com quem não pratica a tolerância. Quanto à preservação do nosso meio-ambiente e do nosso planeta, também todos compreendem e aceitam este valor, embora haja ainda muitos que não o cumprem por motivos mesquinhamente interesseiros.
Mas quaisquer valores – sejam eles relativos ou universais – só são mesmo valores reais quando eles forem postos em prática ou violados pela acção humana, e os efeitos ou sinais do seu cumprimento ou violação se tornarem evidentes em nós e no mundo sensível em que vivemos. Porque, antes da acção humana, que os cumpre ou viola, eles são em nós simples conceitos ou ideias ou princípios mentais, como até já sugerimos nos textos 1 e 3 deste blog. Meros princípios, sim, mas, mesmo assim, poderosos princípios. Tão poderosos que são eles (ou o seu contrário) que, quando levados à prática ou por esta repelidos, vão orientando ou desorientando o mundo.

No mundo sensível em que vivemos, os valores e contra-valores nascem portanto como abstracções nas nossas mentes, e só depois se concretizam na e pela nossa acção, em nós próprios e na nossa circunstância, gozando nós desses benefícios depois, ou sofrendo por essas maldades. Do bem e do mal que praticarmos somos nós os responsáveis: o mal podíamo-lo ter evitado, mas agora há que corrigi-lo, se possível.

sábado, 28 de maio de 2016

399 - Porque Temos Medo

Desde o fundo do nosso ser, ser antiquíssimo,
nós repelimos o perigo, iminente e conhecido,
tendência esta inscrita no nosso cérebro antigo
para que a vida que somos se possa defender.
Mas não assim quanto ao medo – medo de
algo sempre desconhecido e só futuro –
 que vem do nosso cérebro recente e da mente,
não tanto para defender a vida, mas o eu:
se esquecermos o nosso eu, não anularemos o medo?


Nota – A propósito, veja aqui os textos 347,339 e221, e ainda J. Krishnamurti, em O Sentido da Liberdade, pp. 78-81 e 175-177.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

398 - Da Mente, o seu Pasto

No presente, a mente não tem pasto para comer,
pois que o presente é só vivê-lo e não pensá-lo.
O pasto só o encontra no passado e no futuro

quarta-feira, 25 de maio de 2016

397 - Diferenças

Diz-se que, com a criação do homem,
 a Terra se tornou mais perfeita:
mas isto acontece por essa simples razão,
ou pelas boas obras do homem, nela operando?
Não há uma diferençazinha entre Gandhi e Hitler?


segunda-feira, 23 de maio de 2016

396 - Interesses

O nosso interesse próprio não é só o interesse individual:
pois que nunca se satisfaz o nosso interesse próprio
sem fazermos caso do interesse ou bem comum

395 - Ninguém Tem Razão

Uns diziam que era egoísmo pensar em nós próprios,
outros, agora, não menos mal, proclamam
que só temos de pensar em nós mesmos

sábado, 21 de maio de 2016

394 - Gato Enrolado

Como gato enrolado, fruindo suas horas lentas,
assim podemos nós gozar o nosso dia:
atentos plenamente a nós mesmos,
ancorados no fundo oceano da vida

sexta-feira, 20 de maio de 2016

393 - Perda e Ganho

Nós somos indivíduos para nos relacionarmos,
para depois nos transcendermos em relacionamento:
fiozinhos somos de lã da tapeçaria universal

quarta-feira, 18 de maio de 2016

392 - Âncora

Quando formos descendo para águas profundas,
nós vamos constatando que essas águas são de todos:
porque havemos de temer, se lá no fundo está a âncora?


segunda-feira, 16 de maio de 2016

391 - O Poder da Ganância

O crescimento da vida, na natureza, é lento, e nós,
com as pressas, há muito que perturbamos esse concerto:
o bezerro de oiro feito feitiço já se vira contra o feiticeiro

sexta-feira, 13 de maio de 2016

390 - Amplo Luar

Quando estamos absorvidos a fazer alguma coisa,
sendo só esse acto de fazer, esquecemos o nosso eu:
em cada gota de orvalho, esplende o amplo luar

389 - Vida que Respira

É da respiração da lua e do mar que,
outrora, em maré mansa e rasa, saiu
a vida para terra. Se não houvesse lua …

terça-feira, 10 de maio de 2016

388 - Sábia Natureza

Como o grão que em terra nasce e dá mil frutos,
assim é também o nosso corpo, nosso inato sábio:
quantas vezes a inábil mente não perturba este milagre!

sexta-feira, 6 de maio de 2016

387 - A Tripeça

Nós estamos sempre no presente,
mas quando nele estamos e não vivemos
é porque temos um pé já no futuro
e/ou o outro, lá atrás, no passado:
o resultado é cairmos da tripeça,
sendo que o outro pé é a cabeça

terça-feira, 3 de maio de 2016

386 - Um Programa para a Vida

Perguntas, perguntas e mais perguntas,
eis um bom alimento para o espírito:
não verdades dadas e prontas a consumir,
 mas simplesmente o desejo de as descobrir:
a pergunta, a dúvida, a probabilidade,
talvez a certeza e outrossim a verdade
que é o lado de cá das realidades do mundo,
das quais, pois, também faz parte
o que seja ou não, como em espelho,
o nosso íntimo e invisível lado



Nota: B.Russell opõe a “vontade de acreditar” ao “desejo de descobrir”.