domingo, 28 de fevereiro de 2016

371.1-2 (de 4) - Partícula e Onda ou Duas Belas Surpresas

1 – Olá, amigas e amigos! Outrora, quando este escrevente permaneceu por algum tempo num lar de terceira idade – como este blog aí nascido profusamente documenta lá para trás – aconteceram aí coisas inolvidáveis.
            Um belo dia, à hora do almoço da comunidade, no meio do afã da função e do barulho de bengalas mal encostadas e por isso a caírem com estrondo nas tábuas do soalho, eis que retine, estridente, a campainha do telefone. Em menos de um santiamén uma empregada vai atender e logo reclama a presença da doutora Nazaré para vir atender.
Profissionalmente, a doutora Nazaré fizera uma interessante carreira de investigadora na Faculdade de Direito em Coimbra, onde também estudara, e agora é aqui uma velhinha de oitenta e muitos anos, quase só pele e osso, sentada numa cadeira de rodas e sempre tombando levemente o tronco e a cabeça para a direita. O cabelo é branco e grisalho, o rosto é sereno, mas os olhos cerram-se-lhe de todo porque não têm luz.
            Desde que a vi pela primeira vez, por quatro razões a passei a reter nos meus olhos e na minha imaginação: em primeiro lugar, pela sua postura do tronco e da cabeça sempre inclinados para a direita; em segundo, por nunca a ver a falar com as outras pessoas e se manter um tanto afastada delas; em terceiro, por amiúde se pôr a entoar soletrando, muito lentamente e alto, as expressões A-a-a-ajudai-me e A-men, cuja interpretação deixo aos leitores; finalmente, por ser invisual e paraplégica.
E então – diz-se agora o que há momentos já sucedera -, com a ajuda de uma outra empregada, lá rolou até junto do aparelho telefónico a cadeira onde se sentava a senhora e, com o auscultador encaixado na orelha ora de uma ora de outra, lá apuraram uma interessantíssima novidade: tinha nascido um menino que era sobrinho-bisneto da doutora Nazaré! Numa sala só de velhos a comer e a beber, intrometeu-se um bebé, que, antes de beber e comer, começou por respirar!

2 - Confesso que – não sabendo ainda que ela era invisual, mas talvez por ser uma pessoa muito isolada das outras - eu levei algum tempo a abordá-la, dirigindo-lhe algumas palavras.
            Na primeira abordagem que faço a Dª Nazaré, eu pergunto-lhe simplesmente se está bem-disposta. Ela, porém, não responde. Insisto em formular-lhe a pergunta e ... foi tão grande o silêncio que se seguiu como foi completa a surpresa da resposta que deu, se bem que resposta sumida, soletrada: mui-to bem dis-pos-ta! 
Num outro dos primeiros encontros, aproximo-me dela e, sem palavras, ponho a minha mão sobre as suas. Então, ela diz muito lentamente, baixinho e quase soletrando: esta mão é boa. Acto contínuo, eu dedilho-lhe os dedos de uma das suas mãos e respondo: e estes dedos também são todos bons.

            De uma outra vez - ainda antes de o professor Alarcão, antigo reitor da Universidade, lhe ter trazido uma caixinha de chocolates -, vendo-a sempre tão sozinha, eu digo-lhe: deve ser difícil viver assim em solidão! Para meu espanto, ela responde: não muito; às vezes.

Sem comentários:

Enviar um comentário