1 – Olá, amigas e
amigos! Outrora, quando este escrevente permaneceu por algum tempo num lar de
terceira idade – como este blog aí nascido profusamente documenta lá para
trás – aconteceram aí coisas inolvidáveis.
Um
belo dia, à hora do almoço da comunidade, no meio do afã da função e do barulho
de bengalas mal encostadas e por isso a caírem com estrondo nas tábuas do
soalho, eis que retine, estridente, a campainha do telefone. Em menos de um
santiamén uma empregada vai atender e logo reclama a presença da doutora Nazaré
para vir atender.
Profissionalmente,
a doutora Nazaré fizera uma interessante carreira de investigadora na Faculdade
de Direito em Coimbra, onde também estudara, e agora é aqui uma velhinha de
oitenta e muitos anos, quase só pele e osso, sentada numa cadeira de rodas e
sempre tombando levemente o tronco e a cabeça para a direita. O cabelo é branco
e grisalho, o rosto é sereno, mas os olhos cerram-se-lhe de todo porque não têm
luz.
Desde
que a vi pela primeira vez, por quatro razões a passei a reter nos meus olhos e
na minha imaginação: em primeiro lugar, pela sua postura do tronco e da cabeça
sempre inclinados para a direita; em segundo, por nunca a ver a falar com as
outras pessoas e se manter um tanto afastada delas; em terceiro, por amiúde se
pôr a entoar soletrando, muito lentamente e alto, as expressões
A-a-a-ajudai-me e A-men, cuja
interpretação deixo aos leitores; finalmente, por ser invisual e paraplégica.
E então – diz-se
agora o que há momentos já sucedera -, com a ajuda de uma outra empregada, lá
rolou até junto do aparelho telefónico a cadeira onde se sentava a senhora e,
com o auscultador encaixado na orelha ora de uma ora de outra, lá apuraram uma
interessantíssima novidade: tinha nascido um menino que era sobrinho-bisneto da
doutora Nazaré! Numa sala só de velhos a comer e a beber, intrometeu-se um
bebé, que, antes de beber e comer, começou por respirar!
2 - Confesso que –
não sabendo ainda que ela era invisual, mas talvez por ser uma pessoa muito
isolada das outras - eu levei algum tempo a abordá-la, dirigindo-lhe algumas
palavras.
Na
primeira abordagem que faço a Dª Nazaré, eu pergunto-lhe simplesmente se está
bem-disposta. Ela, porém, não responde. Insisto em formular-lhe a pergunta e
... foi tão grande o silêncio que se seguiu como foi completa a surpresa da
resposta que deu, se bem que resposta sumida, soletrada: mui-to bem dis-pos-ta!
Num outro dos
primeiros encontros, aproximo-me dela e, sem palavras, ponho a minha mão sobre
as suas. Então, ela diz muito lentamente, baixinho e quase soletrando: esta mão
é boa.
Acto contínuo, eu dedilho-lhe os dedos de uma das suas mãos e respondo: e estes dedos também são todos bons.
De
uma outra vez - ainda antes de o professor Alarcão, antigo reitor da
Universidade, lhe ter trazido uma caixinha de chocolates -, vendo-a sempre tão
sozinha, eu digo-lhe: deve ser difícil
viver assim em solidão! Para meu espanto, ela responde:
não muito; só às vezes.
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