segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

371. 3-4

3 - D. Nazaré era invisual; e bem sabemos que, em virtude dessa perda, os invisuais desenvolvem mais os outros sentidos, sobremaneira o tacto e o ouvido, criando assim compensações. Assim sendo, eu propus-lhe que, se ela quisesse, eu leria alguns textos para ela ouvir e saborear. Como ela assentisse, começo por ler-lhe, muito pausadamente, o seguinte texto:
            “De que forma ouvem (vocês)? Ouvem com as vossas projecções mentais, através das vossas ambições, desejos, medos, ansiedades, ouvindo apenas aquilo que desejam ouvir, apenas aquilo que vos satisfará, que será gratificante, que proporcionará conforto, que irá aliviar, no momento, o vosso sofrimento? Se ouvirem através do véu dos vossos desejos, então estão obviamente a ouvir a vossa própria voz, estão a ouvir os vossos próprios desejos. E haverá alguma outra forma de ouvir? Não será importante descobrirmos como ouvir, não apenas o que está a ser dito, mas tudo – os ruídos da rua, o chilrear dos pássaros, o barulho do eléctrico, o mar revolto, a voz do vosso marido, da vossa mulher, os vossos amigos, o choro de um bebé? O ouvir só é importante quando não estamos a projectar os nossos próprios desejos naquilo que estamos a ouvir. Será possível colocarmos de lado todos estes véus através dos quais ouvimos, e sermos capazes de ouvir realmente?” (Texto atribuído a Krishnamurti)
            Depois de ler o texto, eu pergunto-lhe se quer que o leia de novo. Como respondesse afirmativamente, releio-lho, não sem que me mandasse parar por duas vezes a leitura, para lhe tornar a ler esses segmentos. E fez-se, de novo, silêncio.
            Finalmente, depois de eu constatar que a Dª Nazaré era uma pessoa feliz e ainda de lhe explicar o que eu pretendia mas só no caso de ela concordar em responder, pergunto-lhe qual seria o nível do seu estado mental de felicidade, numa escala de um a dez. A resposta foi surpreendente. Coloco-me no nove.
            E agora, uma pergunta aos leitores: um bebé a nascer no meio de velhinhas e velhinhos de um lar e também uma velhinha de entre elas, cega e paraplégica, a dizer que é seguramente feliz não são duas belas surpresas?


            4 – Querida Dª Nazaré, a esta hora, hora do mundo dos humanos ainda vivos e por isso já não tua, a esta hora o teu corpo já há muito que está desfeito em terra ou em cinza, e por isso já não sentes com o teu apurado ouvido. Já, de facto, o teu corpo há muito desapareceu … mas tu não está morta! Antes, o teu ser era simultaneamente partícula e onda; agora, embora já não sendo partícula, continuas a ser onda, e por isso não estás morta. Não, porque continuas viva na memória dos que te conheceram e amaram, continuas a ser onda em nós. Viva pela memória, pelo menos, Dª Nazaré continua viva entre os vivos. 

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