II
Traços doutrinários
1 - Por obra dessa
iluminação em si acontecida, o Buda viu, claramente vistas, as três grandes
marcas da existência humana. As duas
primeiras marcas, teóricas e interdependentes, são a transitoriedade ou impermanência da vida, por um lado, e, por
outro, a ausência de uma identidade
permanente em nós, portanto sem uma
alma ou substância pessoal.
Quanto à primeira, o Buda
não se cansou de repetir, vida fora, que somos impermanentes ou transitórios, e
que por isso temos de entranhar em nós essa condição. Quanto à segunda, se é
verdade que pelo nosso lado ocidental temos insistido em que somos dotados de
um eu-ou-alma-ou-substância-pessoal-permanente, o Buda veio contestar-nos e
proclamar que não há quaisquer substâncias no mundo, e muito menos espirituais,
como a alma.
A terceira grande
marca da existência humana, escancaradamente evidente, é a dor e o sofrimento. E
quanto a estes, sofrimento e dor próprios da nossa condição e que a cada passo
sentimos, em vez de simplesmente os suportarmos, utilizemo-los sobretudo para
nos libertarmos daquele jugo da permanência. E note-se já que, para o Buda, a
primeira grande fonte de sofrimento é esse pseudo-permanente eu mental, e por
isso libertarmo-nos dele será a nossa principal ocupação.
2 - Tão importante era
para o Buda esta doutrina sobre o eu mental que, logo no primeiro sermão depois
da iluminação, ele fez questão de a proclamar. A vida é sofrimento, diz ele,
mas o sofrimento advém dos desejos, exigidos pelo eu, que sempre nos divide e
separa dos outros e do mundo, e nos dá uma pretensa segurança só imaginária. E
bem sabemos como os desejos - até mais que as suas conquistas, mas talvez menos
que os seus fracassos, sempre em todo o caso provocados por aqueles - são o principal
alimento do eu. Por isso, é imperioso, antes de mais, que nos livremos desses
desejos individualizantes, a fim de sairmos dessa prisão.
3
- Um outro conceito básico do budismo é o nirvana,
o qual é o objectivo da vida. Cumpre-se este objectivo, quando se extinguirem
os limites do nosso ser finito, quando se queimarem os últimos desejos egóicos,
sempre impedindo uma vida ilimitada e aberta. O nirvana “é essa vida ilimitada”.
E
de Deus? Não se fala de Deus, no budismo? Será ele o nirvana? O Iluminado nunca aceitou o sagrado, o sobrenatural, e
portanto, quando muito, só podemos aqui falar de uma divindade mística e
imanente ao mundo, a consciência absoluta, da qual seríamos minúsculas centelhas.
Temos
então que, “tal como um sonho inconsequente se desvanece completamente no
momento de despertar, tal como as
outras estrelas se afastam por deferência com o sol da manhã, também a
consciência individual será eclipsada pela luz ofuscante da consciência
absoluta”. Ou então, poderá também dizer-se que “a gota de orvalho escorre para
o mar brilhante”, ou que “a gota de orvalho se abre para receber o próprio mar”.
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