sexta-feira, 25 de abril de 2014

213 . 3 - O Iluminado ou o Buda


III

Conclusões

 

         1 – Na obra sobre a Essência das Religiões, de Huston Smith, que temos vindo a seguir e a citar, o autor intenta olhar só para “as religiões do mundo no seu melhor”. Isto é, em cada uma, ele intenta olhar só para as suas ideias e valores originais, portanto ainda antes de serem institucionalizados e também entregues à tradição ou tradições religiosas. Porque, pensa ainda ele, tais instituições e tradições os passarão a adulterar crescentemente.

Assim é, de facto, com todas as religiões. No caso vertente do budismo, e só para dar um exemplo, os dois referidos factores entram de tal modo em jogo que, durante a sua vida, o Buda sempre se confessou só homem e até homem ateu, mas depois, por força da instituição e das tradições respectivas, ele passou a ser nada menos do que um deus!

 

2 – Para passar do conhecimento racional de conceitos e palavras relativo e limitado para o conhecimento intuitivo da contemplação global e absoluta e tantas vezes inefável, ou seja, para passar do eu mental individual para o Eu aberto e universal, o candidato tem de se aplicar em meditação por muitas horas diárias em vários anos seguidos sobre paradoxos verbais adequados, até que, finalmente, sem ponta de ansiedade mas com muita alegria, surgirá o click da iluminação do paradoxo e, com ela, também se dará o salto para a iluminação do candidato. Um afortunado candidato, também afortunado pela razão de que é raríssimo alguém conseguir verbalizar aquilo que lhe aconteceu aquando da sua iluminação, conta: “ Zzt! Entrei. Perdi a fronteira do meu corpo físico. Tinha a minha forma corpórea, claro, mas senti que estava de pé no centro do cosmos. Vi pessoas a avançarem na minha direcção, mas eram todas o mesmo homem. Todos eram eu. Nunca antes tinha visto este mundo. Acreditava eu que tinha sido criado, mas agora tenho de mudar de opinião: nunca fui criado; eu era o cosmos. Não existem indivíduos”.

 

3 – O objectivo do budismo e do hinduísmo imanentista estão tão próximos um do outro que, no que toca à identificação e valorização do agora, eles se equivalem. Para os dois, o agora é a eternidade, e a eternidade é o agora. E aqui quase diríamos que, se se soubesse aproveitar a eternidade do agora, bem menos se pensaria noutra.

Nesta eternidade do agora, as palavras cessam, porque não o sabem explicar. As palavras são o lado de fora dos conceitos, e quando queremos esvaziar-nos dos conceitos para conhecermos melhor – pela compreensão global ou iluminação ou insight – também as palavras não nos servem: nem para lá chegar, directamente, nem para apreender e transmitir e explicar tal conhecimento. Também o Buda se calava como resposta a impertinentes perguntas dos discípulos, e até pregava sermões sem palavras, ou só, quando muito, com uma flor na mão.       

Cessam os conceitos e as palavras, posto o que cada um dos praticantes se perde nos seres e na energia do universo, afinal restando tudo mas de uma forma diversa, pois se trata de todos os seres e do universo agora consciencializados. E isso, para os praticantes, é um estado sentido não como transitório mas eterno, um estado de tal sorte jubiloso que não suporta a incomunicabilidade dessa alegria pura: “A Mãe está presente em todas as casas. Preciso de dar a notícia como quando um vaso de barro cai ao chão e se parte”.

 

Nota:  Sobre o budismo, veja também o texto 16.

sábado, 19 de abril de 2014

213.2 - O Iluminado ou o Buda


II

Traços doutrinários

 

1 - Por obra dessa iluminação em si acontecida, o Buda viu, claramente vistas, as três grandes marcas da existência humana. As duas primeiras marcas, teóricas e interdependentes, são a transitoriedade ou impermanência da vida, por um lado, e, por outro, a ausência de uma identidade permanente em nós, portanto sem uma alma ou substância pessoal.

Quanto à primeira, o Buda não se cansou de repetir, vida fora, que somos impermanentes ou transitórios, e que por isso temos de entranhar em nós essa condição. Quanto à segunda, se é verdade que pelo nosso lado ocidental temos insistido em que somos dotados de um eu-ou-alma-ou-substância-pessoal-permanente, o Buda veio contestar-nos e proclamar que não há quaisquer substâncias no mundo, e muito menos espirituais, como a alma.

A terceira grande marca da existência humana, escancaradamente evidente, é a dor e o sofrimento. E quanto a estes, sofrimento e dor próprios da nossa condição e que a cada passo sentimos, em vez de simplesmente os suportarmos, utilizemo-los sobretudo para nos libertarmos daquele jugo da permanência. E note-se já que, para o Buda, a primeira grande fonte de sofrimento é esse pseudo-permanente eu mental, e por isso libertarmo-nos dele será a nossa principal ocupação.

 

2 - Tão importante era para o Buda esta doutrina sobre o eu mental que, logo no primeiro sermão depois da iluminação, ele fez questão de a proclamar. A vida é sofrimento, diz ele, mas o sofrimento advém dos desejos, exigidos pelo eu, que sempre nos divide e separa dos outros e do mundo, e nos dá uma pretensa segurança só imaginária. E bem sabemos como os desejos - até mais que as suas conquistas, mas talvez menos que os seus fracassos, sempre em todo o caso provocados por aqueles - são o principal alimento do eu. Por isso, é imperioso, antes de mais, que nos livremos desses desejos individualizantes, a fim de sairmos dessa prisão.

 

         3 - Um outro conceito básico do budismo é o nirvana, o qual é o objectivo da vida. Cumpre-se este objectivo, quando se extinguirem os limites do nosso ser finito, quando se queimarem os últimos desejos egóicos, sempre impedindo uma vida ilimitada e aberta. O nirvana “é essa vida ilimitada”.

         E de Deus? Não se fala de Deus, no budismo? Será ele o nirvana? O Iluminado nunca aceitou o sagrado, o sobrenatural, e portanto, quando muito, só podemos aqui falar de uma divindade mística e imanente ao mundo, a consciência absoluta, da qual seríamos minúsculas centelhas.

         Temos então que, “tal como um sonho inconsequente se desvanece completamente no momento de despertar, tal como as outras estrelas se afastam por deferência com o sol da manhã, também a consciência individual será eclipsada pela luz ofuscante da consciência absoluta”. Ou então, poderá também dizer-se que “a gota de orvalho escorre para o mar brilhante”, ou que “a gota de orvalho se abre para receber o próprio mar”.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

213.1 - O Iluminado ou o Buda

I
Traços Biográficos

1 - Olá, amigas e amigos! Siddharta Gautama nasceu por volta de 563 ac, filho de um rei regional da Índia, e por isso com a possibilidade de ter tudo o que de bom, numa perspectiva mundana, a vida podia dar a um homem. Teve educação e instrução de príncipe, participava nas grandes festas do palácio, casou com uma bela princesa aos 16 anos e teve um filho.
Aos 20 anos, porém, começou a sentir-se insatisfeito com aquele modo de vida, e por isso foi rompendo crescentemente com ele. Em certas saídas do palácio, ele gostava de conviver com o povo, e assim se foi apercebendo da miséria e da doença, do sofrimento e da morte. A vida real da humanidade era esta e não a que levava no palácio, e então ele despediu-se para sempre da sua família e deixou de vez essa vida de fausto.
Do palácio, saiu só com o seu cavalo, e por seis anos vagueou pela floresta à procura de iluminação, para o que se encontrava com mestres hindus que lhe ensinaram raja yoga e filosofia hindu. Não satisfeito porém com tais ensinamentos, foi depois conviver com ascetas adoptando as suas práticas. Mas como ficou tão débil que quase ia morrendo, abandonou o ascetismo e procurou outro caminho. Caminho que, por estar entre o hinduísmo insuficiente e ultrapassado e o ascetismo rejeitado, Siddharta chamou Caminho do Meio.

2 - E aconteceu que, assim se dedicando a um “misto de pensamento rigoroso e concentração mística” segundo as directrizes do raja yoga, Siddharta, à sombra de uma figueira, conseguiu sentir-se desperto ou iluminado pela primeira vez, mas não sem que nessa altura tivesse sido tentado pelo demónio, e vencido tais tentações. E foi assim que Siddharta Gautama passou a chamar-se e a ser chamado Buda, que quer dizer Desperto ou Iluminado. Em suma, ele afastou-se para a floresta e para recolher ensinamentos durante seis anos, e depois, como Buda, dedicou-se até à morte a um árduo ministério que durou quase meio século.

3 - Mas, afinal, o que vem a ser a iluminação? Numa primeira abordagem, digamos que, antes de mais, a iluminação não é nada de sagrado, no sentido religioso tradicional. Não é porque Siddharta, depois O Iluminado ou O Buda, nunca aceitou o sobrenatural. E então, de uma forma positiva, qual foi essa iluminação que lhe aconteceu?

Depois de tão árduo trabalho de preparação, Siddharta viu, claramente visto, ou melhor, contemplou com toda a nitidez possível toda a realidade de si mesmo: como ser humano integrado no seu contexto social e natural. Sem sobrenatural, sem graça divina, mas só na sua realidade natural, muito embora agora mais enriquecida por meio da iluminação. Isto é, agora já não se olhava como consciência relativa e limitada, mas como consciência absoluta: já não era o eu mental individual minúsculo, mas o Eu aberto e universal, absoluto e eterno.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

212 - O Filtro das Palavras

Algumas palavras vão
de vão em vão
tecendo o seu devaneio
vão, que são:
são as palavras vãs

Outras, acintosas ardilosas
insensatas criminosas
… palavras são

Todas as palavras nascem
do vazio e do silêncio,
mas as sábias, essas,
para assim soarem
hão-de ainda passar
de novo, pelo filtro

do silêncio