sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

207 - Como a Água que Corre

Sobem os dois a montanha
em passo lento e atento:
líquida luz em caudal
tombando sobre penedos,
à distância,
e perto, um ribeiro doce
em cuja margem se sentam
à tardinha
olhando a água que corre

Como a água, os dois aceitam
ir na corrente do tempo
do tempo próprio dos seres,
ir os dois degenerando
sempre embora resistindo
no que podem quanto podem

No entanto, no percurso
que cada um vai fazendo,
se o tempo gasta e corrompe,
ao invés crescem a paz
e a compreensão do que somos:

Na corrente em que nós vamos,
nós vamos indo mas somos,
somos conchas vazias
para abraçarmos o mundo

Embora seres de tempo,
ainda assim saboreemos
o sabor desta corrente

Nota: Sobre este assunto, veja também, entre outros, se quiser, os textos 8 e 116.


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

206 - Wall Street

Com uma nuvem branca e imensa de pardais,
começando ao rés das estradas,
hão-de entupir-se todos os caminhos para Wall Street.
A nuvem subirá depois, e, densamente,
envolverá o alto palácio de negócios financeiros,
e muitos deles, dos pardais, destemidos,
transporão o interdito limiar do palácio e entrarão
nas salas onde se reúnem os magnatas da finança,
e a testa e as mãos a cada um, sem dó nenhum
picarão, e a todos, de esterco,
enxovalharão as vestimentas de ouro

E será tão grande a deselegância da passarada,
contra todo o mundo financeiro cometida
- a queda da Wall Street arrastará pela última vez
a das outras praças financeiras do mundo –,
que o trato com o dinheiro passará a ser diverso,
e a vida de todos os humanos também:
das bolsas e bancos nascerão bancos de sangue
(supervisionados pelo poder político democrático),
o dinheiro/sangue para alimentar a vida das nações

E então, a revoada ruidosa de pardais
 chamará muitas outras aves, variegadas e belas,
e todos os pobres do mundo se encantarão
com o gorjeio branco universal das aves,

espelho colorido e sonoro da sua íntima alegria

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

205 - A Pessoana Vertigem da Anulação do Eu Mental


1 – Olá, amigas e amigos! Já dissemos no texto 138, por palavras suas, o que Fernando Pessoa sentiu ao ter conhecimento e depois ao traduzir a obrinha de Helena Blavatsky – A Voz do Silêncio -, mas não é inútil trazê-las de novo para aqui. Confessou então ele, depois de traduzir a obra: o seu conteúdo “abalou-me a um ponto que eu julgaria impossível”.
E isto, não sem razão ou razões! Porque, se, com a nossa mentalidade de ocidentais que é também a de Pessoa, lançarmos um primeiro olhar para a cultura oriental, já achamos diferenças em relação a nós, então, se compararmos as duas culturas naquilo que cada uma tem de essencial, concluímos que quase um abismo as separa! Porque, enquanto na nossa cultura ocidental nós vincamos a individualidade e o “eu” mental de cada um, na cultura tradicional budista do oriente acentua-se e propõe-se o apagamento desse “eu” psicológico ou mental e a unidade de tudo.

         2 – Ora, no caso de Pessoa, que possui uma vasta produção poética que lhe advém de vários “eus” – o do ortónimo e o de todos e cada um dos heterónimos – isso, à primeira vista, poderia parecer indicar-nos que nele se operou um encarniçamento do seu “eu” mental, ao ponto de criar outros “eus” mentais, cada um sempre diverso de todos os outros.
Poderia parecer, mas é exactamente ao contrário. Porque criar e usar outros nomes e “eus” é desvalorizar os primeiros. Na sua consciência, ele manipula a seu prazer os diversos “eus”, escolhendo ora um ora outro, enquanto se esvazia dos restantes. E então, porque não pensar-se a si próprio – como realmente se pensou – ser só consciência, na raiz da sua existência, consciência vazia e sem qualquer eu mental, dos quais portanto – e de todos - poderia abstrair?

         3 – No nosso texto 76, cujo título é Consciência, Novelos mentais e Mundo Verdadeiro, nós versámos, entre o mais, o caso de Pessoa. Por citações da sua obra poética, já aí apontadas, o poeta sabe o que de facto é mas não devia ser, ou seja, não devia falar, falar, falar mesmo “sem querer falar”, e também sabe o que existencialmente devia ser e não é: devia ser simples consciência do mundo: “Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as coisas: só me obriga a ser consciência”.
         Quer dizer, ele acha que devia ser só aquilo que existencialmente está antes de quaisquer conteúdos constituintes de um “eu”, e portanto só consciência. E ainda acrescenta: “O que há é só o mundo verdadeiro, não é nós, só o mundo; / O que não há somos nós, e a verdade está aí” E mais adiante: “Que é da minha realidade, que só tenho a vida? / Que é de mim, que sou só que existo”? Na raiz portanto de si mesmo, Pessoa entende que é só consciência, consciência vazia de antes de todos os “eus” (que foi utilizando e não devia), ou melhor – já que não há consciência sem que ela seja consciência de algo – consciência do (seu) silêncio interior. Consciência do silêncio, ou também consciência directa das coisas, como quer Caeiro, ou seja, não mediada pelos nossos conceitos sobre elas, se bem que isto seja possível só a “espaços” contemplativos quase intemporais.
         Parece que até é Álvaro de Campos quem, referindo-se ao seu irmão poético Ricardo Reis, afirma de passagem, mas passagem muito importante e também surpreendente: ele “é um grande poeta (…) se é que há grandes poetas no mundo, fora do silêncio dos seus corações”.

         Assim voltamos ao silêncio, o primordial silêncio … íntimo silêncio de cada ser humano, talvez fonte dos mais belos e profundos poemas.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

204 - Elogio do Amor

Elogio do Amor

Por chover no ninho onde estavam,
por muitos barulhos e mais malfeitorias,
um a um, nos dentes, para melhor abrigo,
mãe gatinha transporta os seus filhos;

     Sentados num banco do jardim, os pais,
embebem o seu olhar, complacentes,
nos álacres movimentos da menina,
com outras crianças brincando;

Também se diz que Deus é amor:
mas é amor o melhor nome
que temos para Deus,
ou Deus o melhor nome
que temos para o amor?


Oferece-se este vaso de palavras a quem apreciar a vida e gostar de pensar.