terça-feira, 24 de janeiro de 2012

51 - Por este Rio Abaixo

Olá! De costas voltadas para Fausto – extremoso cantor, muito embora só das nossas glórias de antanho -, caminhemos nós agora por este rio abaixo. Portanto, nestas próximas semanas, nós vamos passear; passear pelo Danúbio, rio que nasce na Alemanha e desagua lá longe no Mar Negro. É portanto um grande rio da Europa e também um dos maiores do mundo. Não nos fica nada mal termos algumas ideias, ou relembrarmo-las, sobre coisas que afinal nos são próximas. Não pertencemos nós à Comunidade Europeia?
Além de ter cada um a sua história, os rios são um espelho das nações por onde passam. Eles desvendam segredos geológicos dos terrenos irrigados: vales abruptos aqui ou largos além, consoante o passado de cada um e a estrutura do terreno; eles falam de amizades e discórdias entre populações ribeirinhas; eles contam lances da história dessas nações, nos quais avultam personagens famosas, pelo bem ou pelo mal de que, em vida, foram protagonistas.
Mas os rios, em sua passagem, com as suas águas, a todas essas populações e nações por si banhadas abraçam de igual modo, sem ressentimentos de qualquer espécie, sobremaneira quando se trata de cursos de água internacionais.
O nosso Guadiana é primeiro só de Espanha, depois é fronteiriço e finalmente é só nosso. No seu trecho português, as águas somem-se algures da superfície, levam sumiço, o rio fica seco como paisagem lunar; em breve porém, lá mais à frente, elas emergem do profundo da terra e juntam-se umas às outras, correndo de novo pelo seu leito. Talvez a gente vá conhecer coisa semelhante, embora em escala maior, claro está, nesse Danúbio que merece a nossa visita.
Nesses dois trechos dos referidos rios, portanto, as águas recolhem por uns tempos os seus sentidos com que costumam festejar o mundo, ao longo da sua passagem, e afundam-se nos seus secretos escritórios a meditarem nas suas anteriores e recentes vivências, um pouco como fazem os nossos comerciantes que fecham para balanço pelo Fim de Ano, pesando o deve e o haver do estabelecimento, agora segundo os ditames do Gaspar e da troika. Mas aqui, e agora, para nós, sucede precisamente o contrário do que acontece com esses rios e com os comerciantes. Para nós, esta é a hora de abandonarmos os nossos esconderijos e subirmos à tona e à luz das coisas do mundo, apartados das nossas elucubrações mentais; é a hora de sairmos a espairecer, a arejar a pevide por uns tempos bons, a hora de sentirmos o mundo belo e bom mas também feio e mau, até porque é com passeatas semelhantes que as abelhas vão encontrando nas flores a não abstracta mas concreta substância para depois fabricarem em seus secretos escritórios essa terrena delícia que é o mel, mais saborosa que muitas outras delícias virtuais e aéreas.
O rio Douro, o Douro actual, começou numa torrente muito antiga que desaguava junto ao Porto. Como era torrente, uma torrente áspera e de acentuado declive, ela foi facilmente remontando cabeceiras por aí fora e para leste, até apanhar, vejam bem, já em Espanha, o Douro antigo que também corria para leste e desaguava numa depressão interior de Castela. Não é aqui o caso de nós termos surripiado esse rio a Espanha, não senhor, pois que, quando isso aconteceu, ainda faltavam uns minutinhos cósmicos – pelas nossas contas agora eles serão uma eternidade – para aparecerem na Terra estes bichinhos humanos que somos nós e os espanhóis.
O rio Danúbio nasce na Alemanha, mas não é o rio germânico por excelência. Não é porque ele faz a desfeita ao “gado soberbo”alemão - segundo o nosso épico – de correr também por outras várias nações, a todas abraçando por igual. Porque o rio alemão por excelência é o Reno, o qual nasce e se fina nesse país, todinho portanto dele.
Com este exercício de viagem que propomos pelo Danúbio abaixo – a descer vai-se melhor – libertamo-nos das habituais especulações por uns tempos e aplicamos os sentidos em objectividades do nosso mundo terreno, assim conhecendo algo mais dessas nações desta nossa Europa milenar mas agora tão seca, ainda não seca de água nem de ideias mas de eficazes decisões.
Por certo que, ao logo deste rio, iremos contemplar muitas maravilhas mas também grandes desgraças, inesperados fenómenos do ar e do chão, e até talvez, se tivermos muita ou pouca sorte, no seio turbulento das suas águas possamos encontrar aquela já conhecida segunda edição do andrógino original (48, 50) tentando salvar a nado, ainda no germânico trecho do rio, o Tratado da Verdadeira Fundação da Europa, batalhando pela vida e pelo tratado, e só salvo in extremis da voragem das águas pelos seus amigos bávaros, primeiro bárbaros mas há muito feitos cristãos democratas.
Para uma viagem tão grande e importante como é esta, nós iremos precisar de um bom guia. Mas bom guia é o professor Cláudio Magris, através da sua inspiradora obra Viajando pelo Danúbio, de 86. Desta obra extraímos e elaborámos então vários textozinhos que juntámos em quatro pequenos molhos, os quais aqui publicaremos a seguir, em outras tantas publicações. E se. ao longo da viagem, encontrarmos no rio essa nova versão do andrógino original batalhando com as águas, não o(a) tratemos mal, embora também não possamos ajudar a salvá-lo/a!

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