segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

51.1 - Primeiro Molho

1 -“A fenomenologia tem razão, o puro aparecer das coisas é bom e verdadeiro, a superficialidade do mundo é mais real do que as gelatinosas cavidades internas. Por isso, também é bom que saiamos fora de nós, pois que quem fica sempre no interior chafurda e perde-se, acabando por queimar incenso a qualquer ídolo de fumo resultante da lixeira dos seus medos”.

2 – O rio Danúbio (Danau ou Istro) nasce na Alemanha, avança pela Áustria, Eslováquia, Hungria e Jugoslávia; serve de fronteira entre a Bulgária e a Roménia, até se perder no Mar Negro.

3 – O Danúbio nasce na Floresta Negra. O seu ramo mais a montante é o Breg, mas pouco depois surge o Brigach. Na confluência destes dois primeiros ramos se costuma pôr a nascente oficial do rio. Ele é um dos maiores do mundo. Tem de comprimento 2.888Km, e uma bacia de 817.000Kms quadrados.

4 – Poucos quilómetros depois da referida confluência e, tal como acontece com o nosso Guadiana, o rio mergulha nos rochedos, desaparecendo da superfície. Mas uns 40Kms depois, ele ressurge para logo se lançar no Lago de Constança.

5 – No Lago de Constança, o Danúbio encontra-se com o rio Reno, que corre para Norte e só pela Alemanha. Por isso, este é o rio preferido do país, enquanto que o Danúbio é o rio da Mitteleuropa.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

51 - Por este Rio Abaixo

Olá! De costas voltadas para Fausto – extremoso cantor, muito embora só das nossas glórias de antanho -, caminhemos nós agora por este rio abaixo. Portanto, nestas próximas semanas, nós vamos passear; passear pelo Danúbio, rio que nasce na Alemanha e desagua lá longe no Mar Negro. É portanto um grande rio da Europa e também um dos maiores do mundo. Não nos fica nada mal termos algumas ideias, ou relembrarmo-las, sobre coisas que afinal nos são próximas. Não pertencemos nós à Comunidade Europeia?
Além de ter cada um a sua história, os rios são um espelho das nações por onde passam. Eles desvendam segredos geológicos dos terrenos irrigados: vales abruptos aqui ou largos além, consoante o passado de cada um e a estrutura do terreno; eles falam de amizades e discórdias entre populações ribeirinhas; eles contam lances da história dessas nações, nos quais avultam personagens famosas, pelo bem ou pelo mal de que, em vida, foram protagonistas.
Mas os rios, em sua passagem, com as suas águas, a todas essas populações e nações por si banhadas abraçam de igual modo, sem ressentimentos de qualquer espécie, sobremaneira quando se trata de cursos de água internacionais.
O nosso Guadiana é primeiro só de Espanha, depois é fronteiriço e finalmente é só nosso. No seu trecho português, as águas somem-se algures da superfície, levam sumiço, o rio fica seco como paisagem lunar; em breve porém, lá mais à frente, elas emergem do profundo da terra e juntam-se umas às outras, correndo de novo pelo seu leito. Talvez a gente vá conhecer coisa semelhante, embora em escala maior, claro está, nesse Danúbio que merece a nossa visita.
Nesses dois trechos dos referidos rios, portanto, as águas recolhem por uns tempos os seus sentidos com que costumam festejar o mundo, ao longo da sua passagem, e afundam-se nos seus secretos escritórios a meditarem nas suas anteriores e recentes vivências, um pouco como fazem os nossos comerciantes que fecham para balanço pelo Fim de Ano, pesando o deve e o haver do estabelecimento, agora segundo os ditames do Gaspar e da troika. Mas aqui, e agora, para nós, sucede precisamente o contrário do que acontece com esses rios e com os comerciantes. Para nós, esta é a hora de abandonarmos os nossos esconderijos e subirmos à tona e à luz das coisas do mundo, apartados das nossas elucubrações mentais; é a hora de sairmos a espairecer, a arejar a pevide por uns tempos bons, a hora de sentirmos o mundo belo e bom mas também feio e mau, até porque é com passeatas semelhantes que as abelhas vão encontrando nas flores a não abstracta mas concreta substância para depois fabricarem em seus secretos escritórios essa terrena delícia que é o mel, mais saborosa que muitas outras delícias virtuais e aéreas.
O rio Douro, o Douro actual, começou numa torrente muito antiga que desaguava junto ao Porto. Como era torrente, uma torrente áspera e de acentuado declive, ela foi facilmente remontando cabeceiras por aí fora e para leste, até apanhar, vejam bem, já em Espanha, o Douro antigo que também corria para leste e desaguava numa depressão interior de Castela. Não é aqui o caso de nós termos surripiado esse rio a Espanha, não senhor, pois que, quando isso aconteceu, ainda faltavam uns minutinhos cósmicos – pelas nossas contas agora eles serão uma eternidade – para aparecerem na Terra estes bichinhos humanos que somos nós e os espanhóis.
O rio Danúbio nasce na Alemanha, mas não é o rio germânico por excelência. Não é porque ele faz a desfeita ao “gado soberbo”alemão - segundo o nosso épico – de correr também por outras várias nações, a todas abraçando por igual. Porque o rio alemão por excelência é o Reno, o qual nasce e se fina nesse país, todinho portanto dele.
Com este exercício de viagem que propomos pelo Danúbio abaixo – a descer vai-se melhor – libertamo-nos das habituais especulações por uns tempos e aplicamos os sentidos em objectividades do nosso mundo terreno, assim conhecendo algo mais dessas nações desta nossa Europa milenar mas agora tão seca, ainda não seca de água nem de ideias mas de eficazes decisões.
Por certo que, ao logo deste rio, iremos contemplar muitas maravilhas mas também grandes desgraças, inesperados fenómenos do ar e do chão, e até talvez, se tivermos muita ou pouca sorte, no seio turbulento das suas águas possamos encontrar aquela já conhecida segunda edição do andrógino original (48, 50) tentando salvar a nado, ainda no germânico trecho do rio, o Tratado da Verdadeira Fundação da Europa, batalhando pela vida e pelo tratado, e só salvo in extremis da voragem das águas pelos seus amigos bávaros, primeiro bárbaros mas há muito feitos cristãos democratas.
Para uma viagem tão grande e importante como é esta, nós iremos precisar de um bom guia. Mas bom guia é o professor Cláudio Magris, através da sua inspiradora obra Viajando pelo Danúbio, de 86. Desta obra extraímos e elaborámos então vários textozinhos que juntámos em quatro pequenos molhos, os quais aqui publicaremos a seguir, em outras tantas publicações. E se. ao longo da viagem, encontrarmos no rio essa nova versão do andrógino original batalhando com as águas, não o(a) tratemos mal, embora também não possamos ajudar a salvá-lo/a!

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Nota Solta

Nem agora, quando se vê às escâncaras a ominosa astúcia dos mercados, a Europa vai entender-se politicamente para não se deixar soçobrar?

domingo, 15 de janeiro de 2012

Pistas de Leitura dos Textos 49 e 50

49 e 50 - A congénita incompletude do ser humano, segundo duas histórias mitológicas de Platão:
49 – O mito de Eros, contado pela personagem Sócrates;
- pensar-amar a felicidade ou amar-pensar a felicidade;
- As diligências pedidas por este amar-pensar a felicidade.
50 - O mito do andrógino original;
- Perguntas e mais perguntas, levantadas pelos dois mitos.

sábado, 14 de janeiro de 2012

50 - O Mito do Andrógino Original

Olá! Lembram-se de termos falado há dias (48), de raspão, daquela pretensa e actual 2ª edição do andrógino original, não lembram? Falemos então hoje da 1ª edição desse andrógino original, um mito muito interessante que nos foi legado por Platão.
A segunda história mitológica de O Banquete (49), pela qual se vê que o ser humano é carência e desejo, é o mito do andrógino original, que Platão, sem guardar ressentimentos, põe na boca da personagem Aristófanes, correspondente ao real comediógrafo grego do mesmo nome, que teria sido um dos acusadores de Sócrates aquando da morte deste, e é autor de As Nuvens, peça em que, também aqui, satiriza este primeiro filósofo.
Conta então Aristófanes, já muito metido nos copos, que outrora os homens eram duplos, com duas cabeças, quatro braços e quatro pernas. Eram os andróginos originais, quer eles fossem homens de um lado e mulheres do outro, quer ainda duas vezes homens ou duas vezes mulheres. E eram tão poderosos que construíram uma torre gigantesca para conquistarem o Olimpo dos deuses.
Perante isto, os deuses decidiram punir essas criaturas orgulhosas, e o castigo foi dividirem cada um deles em dois, assim criando homens e mulheres como hoje os temos. É por isso que, desde então, todos levam na terra uma vida errante, à procura da sua metade perdida. E quando a encontram é o êxtase, não parando de se amarem e desejando fundir-se um no outro, assim fazendo um só ser como eram no início.

Vêm agora mil perguntas sobre estes dois mitos apresentados por Platão. Comecemos pelo primeiro (mito de Eros), mas já sem negligenciar o segundo:
+ Porque é que Sócrates dizia sempre que nada sabia? E porque é que ele tinha sempre opiniões contrárias às dos outros? E porque é que foi acusado de desencaminhar a juventude?
+ Atendendo a que os dois mitos nos apresentam várias fontes de prazer (festa, comida, bebida, erotismo, sexo, convívio, dissertação sobre assuntos espirituais, êxtase de amor…), podemos perguntar: O que será o prazer? Será ele tão mau (ou tão bom) como às vezes o pintam? Será ele realmente diferente das coisas que dão prazer?
+ Existirá mesmo a vontade, para aceitar ou rejeitar os prazeres, ou haverá somente a inteligência, para decidir sobre eles e os regular?
+ A chamada “força de vontade” não será só a maior ou menor convicção ou determinação da inteligência, que também diligencia pela regulação do instinto?
+ Não será necessário, por vezes, a inteligência rejeitar alguns prazeres e aceitar mesmo a dor, para depois se terem prazeres mais intensos e duradoiros, ou evitar dores maiores?
+ E quando nós, irremediavelmente, temos mais dores que prazeres, não nos diz a inteligência para as aceitarmos, para que assim ainda possamos usufruir daqueles?
+ Porque é que os prazeres espirituais são tão pouco cultivados, eles que podem ser tão intensos? Não será por falta de educação?
+ Não estará toda a ética ao serviço do prazer?
+ Será que os “poros” da nossa pele têm algo a ver com o nome do deus que foi pai de Eros? E o significado da palavra “penúria”, por exemplo, pode relacionar-se com o nome da mãe desse deus?
+ Que significado haverá em ter Eros nascido de um deus embriagado?

Perguntas agora, em relação ao segundo mito:
+ Platão não guarda ressentimentos contra Aristófanes, mas não vai à bola com ele! Assim, sendo este o narrador desta história, porque é que o autor o põe bêbedo a contá-la?
+ Na comédia As Nuvens, o autor apresenta Sócrates numa cesta, no ar, ou seja, nas nuvens. Porque terá ele feito isso ao filósofo? Esse artifício terá semelhanças com a mensagem do filósofo?
+ Que significado terá a expressão, por nós ainda hoje usada, “encontrei a minha cara-metade”? Terá a ver com este mito?
+ Que dizer dos casais homossexuais, à luz deste mito? A possibilidade das uniões homossexuais estará aqui contida?
+ Haverá relação entre este mito e a maternidade de substituição, entre nós recentemente legalizada?
Concluamos agora tudo o que queríamos dizer sobre estes dois mitos, que nos falam da incompletude ou congénita carência do ser humano. Não será o amor, o verdadeiro amor, o remédio para aquelas e o caminho para a plenitude? O amor … e o pensamento, o amar e o conhecer, porque amar e conhecer são dois em um, como já vimos (textos 14 e 15)!

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

49 - O Mito de Eros

Olá, amigas e amigos!
Conhecem todos muito bem as palavras erótico e erotismo, não conhecem? E também sabem todos qual é a quente substância que ambas comportam, não é? Estão além dois rapazolas já com o dedo espetado no ar e a rir-se, como quem sabe e já quer pôr-se em acção de responder! Mas antes que respondam, vamos contar uma história.
Inspirado no magistério de Sócrates de quem foi discípulo, Platão apresenta-nos em O Banquete duas histórias mitológicas, das quais a primeira conta o nascimento de Eros. É então assim esta história, entre cujas personagens o autor pôs também a figura do seu mestre Sócrates, precisamente a personagem a quem é confiada a narração do próprio mito.
Entre outros, portanto, Sócrates é convidado para um pequeno festim. E depois de todos terem comido e bebido muito bem, os convidados perguntam-se como prosseguir o serão: entregarem-se a uma orgia monumental e completa ou aplicarem-se numa discussão filosófica. Optam por este segundo prazer, também é de facto prazer, e assim mandam embora os músicos e as belas bailarinas. (Não é que estes gregos antigos, intervenientes na obra, sejam diferentes de nós, amando assim tanto o debate filosófico, não! Acontece assim, simplesmente, por ficção de Platão, para apresentar a sua doutrina!).
Decidem então falar sobre o amor, e um médico, seguido de poetas e de políticos, cada um a seu modo, elogiam Eros, como o mais belo dos deuses. Falando em último lugar, Sócrates lamenta-se por estar em desacordo com todas as anteriores opiniões. Começa então por dizer que nada sabe, e explica depois que tudo o que pode dizer sobre o desejo o recebeu de uma mulher sábia, a parteira Diotima, que lhe contou a bela história que segue.
Para comemorar o nascimento de Afrodite (a deusa da Beleza), todos os deuses foram convidados para um festim. Um deles, Poros, deus da habilidade e do expediente, embriagado com o néctar, saiu para o jardim e adormeceu. Então Pénia, a pobreza, muito magra e esfarrapada, que tinha vindo mendigar, decidiu aproveitar-se da situação: deitou-se ao lado desse belo e divino rapaz e, nove meses volvidos, nascia o pequeno Eros, o demónio do desejo. Ele possui as características herdadas dos pais: é pobre mas inventivo; é falta de ser, mas também acção. Intermediário entre os deuses e os homens, Eros é o semi-deus ou o demónio do desejo e do amor. Um ser pobre, sim, mas industrioso, mas com expediente.

Para Sócrates, procurar o sentido, ou seja, pensar o conceito de felicidade ou de beleza ou de sabedoria … isso é desejar e amar a felicidade, a beleza, a sabedoria…
Dada a congénita incompletude do ser humano, amar é, para Sócrates, uma necessidade; amar é necessariamente desejar o que não temos, para nos podermos completar. Amamos a felicidade porque não somos felizes; a sabedoria porque não somos sábios; a beleza porque não somos belos, ainda que sejamos bonitos …E é precisamente este desejo necessário de felicidade, ou amor à felicidade, que nos leva a pensar a felicidade. Pensar, ou tentar encontrar o sentido de felicidade é, aplicando a mim próprio o pensamento, amar a minha felicidade. Vejo-me incompleto e vejo e também sinto que o amor ou a comunhão me completam e, a partir daqui, é o amor que irá comandar o pensar.
Pensar é portanto a actividade ou caminho que me leva àquilo que eu amo, àquilo de que congenitamente estou privado, mas também àquilo que congenitamente me pode e deve completar. Eu amo a minha felicidade, pensando a felicidade; eu penso a felicidade, amando a minha felicidade. Pensar a felicidade e também amá-la em mim próprio, como um ser feliz, isso é o máximo que eu posso desejar.
É claro que desejar-amar a minha felicidade e pensar a felicidade em mim não serão nada o mesmo que eu próprio já ser feliz! Longe disso! Mas “o meu desejo-amor por ela” sabe muito bem agenciar e tornar seu cúmplice “o meu pensá-la”, fazendo os dois tudo o que é possível para lá chegarem. E muitas vezes chega-se mesmo. Quem dera que muito mais vezes lá se chegue, para que muito mais pessoas sejam realmente felizes.
A minha felicidade será então o fruto que poderei colher do meu desejo-amor dela e do meu pensá-la, com todas as diligências bem concretas que em cumplicidade os dois vão fazendo ao longo da vida, nas quais se inclui, como primeira substância, a contínua atenção à minha interioridade e também a minha ligação aos outros humanos, à Terra, ao Universo. Porque me parece que os dois acharão que a concreta felicidade está dentro de nós e na nossa relação com o contexto em que vivemos.
Dizemos agora, finalmente, que aqueles levantados dedos dos rapazolas já baixaram há muito, pois que o fio do sentido do texto levou uma não prevista direcção, pelo menos para eles. A direcção que eles pensavam não é de desprezar, não senhor, mas esta outra direcção é mais substancial e completa, até porque pode incluir a que pensavam e já tinham nos dedos par ser apresentada e depois cumprida!

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Pistas de Leitura do Texto 48

- O que é a felicidade?
- Onde encontrar esse bem imperecível?
- Há espaço para ele, neste tempo devorador?
- A envolvência formal do aperto dos atacadores e do mito do andrógino original.
- Não é o dinheiro algo de sagrado, se o considerarmos como o sangue das nações?