1 - Olá, amigos e amigas! Abre-se aqui um
conjunto de três textos inspirados em Hannah Arendt, pois tive a felicidade de conviver
com ela, já que viva continua na sua obra denominada Pensar. Centrada na intimidade do ser humano - lugar sem lugar nem
tempo, onde só mal se ouve o bulício mundano do que aparece aos sentidos e apenas
se sente um leve rumor do tumultuoso mundo das paixões da alma - Hannah Arendt fala-nos muito baixinho, quase só
um balbuciar de verbo mental, sobre a vida do espírito.
A ideia destes textos trouxe-a então eu desse
sagrado convívio, nem eu deles agora sabendo bem o que é dela e o que lhe é
alheio, por certo que neste caso já lhe adulterando o seu pensar, espúrias glosas
estas de presumido aprendiz, por também gostar de tocar no recôndito do sagrado
do ser humano. Ouro puro é o dela, de muitos quilates, à mistura agora com este
grosseiro metal que é de usança nesta oficina de textos. Mas como as diferenças
serão bem notórias, facilmente se destrinçarão os dois, pelas bem diversas
propriedades de cada um.
Nunca é demais
falarmos, para melhor nos conhecermos, dos elementos que nos constituem como
seres humanos: do nosso corpo e da nossa mente, e agora também da actividade de
pensar e conhecer, que é própria da nossa mente (ver textos 13.3, 14 e 15).
2 - Num tempo
florescente em paz e desenvolvimento económico e cultural, como aconteceu na
Grécia antiga no tempo de Platão e Aristóteles, o ser humano, para além de ver
satisfeitas as suas básicas necessidades para poder viver com dignidade, pôde
sentir ainda um prazer especial em estar vivo. E então, o corpo e o coração e a
vontade libertaram a razão, que assim se entregou, quase esquecida do corpo, à
sua peculiar actividade de pensar, ou melhor, de especular, a partir da
motivação do espanto que, através dela, o “ser humano todo” sentia perante as
realidades do mundo, assim boas e belas.
Ao
contrário, porém, entre os romanos, nos tempos da decadência imperial em que
dificuldades e perigos de toda a sorte perseguiam o ser humano, aí o corpo e o
coração e a vontade ocuparam e quase aprisionaram a razão impondo-lhe que
encontrasse solução para os perigos em que todos eles e a própria razão caíam.
É então, portanto, este o tempo em que, em vez do admirativo espanto grego
perante um mundo considerado belo e bom, nos aparece, inventado pela razão, o
“nil mirari”, o “não te admires de nada” do que vai acontecendo no mundo; nos
aparece como lema de vida a fuga desse mundo nada belo e nada bom; nos
deparamos especialmente com os ditames estóicos, propostos pela razão, para que
o corpo e o coração e a vontade possam vencer as prementes dificuldades e
infortúnios da vida.
Houve
um nobre cidadão romano, nos finais do império, um romano de alta relevância
social e política, que fez funcionar exemplarmente aquele “nil mirari”, pondo a
sua razão a encontrar remédio para o infortúnio absoluto em que tinha caído.
Acusado injustamente de crimes, condenado a uma morte medonhamente lenta para
que a perda absoluta da vida lhe fosse mais sentida e sofrida, condenado num
julgamento fantasma em que nem sequer esteve presente por estar retido numa
cela à espera da sua morte, Boécio escreve, para seu consolo, precisamente o
livro que se intitula Da Consolação da Filosofia.
3
- Quer dizer, a filosofia, que, para os gregos servia para pensar ou especular
sobre a vida e sobre o mundo a partir sempre de um agradável espanto motivador,
é utilizada agora, entre os romanos, para os ajudar e consolar nas amarguras da
vida. Neste mundo de ilusões, a nossa vida é como a roda da fortuna. Nas partes
exteriores da roda, reina de facto a fortuna, com as desgraças que o destino
nos traz; mas à medida que a contemplamos no seu centro, nós vemos que uma
“verdade imutável” a governa.
Coisa
curiosa é notar que, sendo Boécio um cristão, estaríamos à espera que ele olhasse
os reveses da vida e o mistério da morte na perspectiva da sua religião.
Manifestamente não o faz, porque quem lhe aparece na cela a consolá-lo, é
precisamente essa nobre e jovem figura feminina, que se chama Filosofia.
Portanto,
nós pensamos quando, movidos pelo espanto, sondamos o mundo bom e belo que
somos e em que vivemos, mas também pensamos quando, neste mundo nada bom e nada
belo que nos constitui e onde estamos envolvidos, o nosso corpo e o coração e a
vontade nos pedem lenitivo e refrigério, perante tantas desgraças que nos podem
afligir. No caso dos outros seres humanos, eu faço parte do seu mundo
“objectivo”, tal como eles também fazem parte do meu.
Convém
portanto, por um lado, sondarmos o mundo com o nosso pensamento, descobrindo a
realidade e deliciando-nos com ela; mas, por outro, também munir-nos de
princípios e de coragem para navegarmos neste mar encapelado que é a nossa vida
mortal.